Salazar caiu de muito mais alto do que de uma cadeira de lona

A queda e a sua incapacitação representam uma espécie de labirinto borgeano, trágico e humano, mas que são uma metáfora sobre o fim do Estado Novo, que de facto com ele caiu da cadeira.

O livro de José Pedro Castanheira, Alberto Caeiro e Natal Vaz sobre a queda de Salazar mostra as virtualidades do discurso jornalístico de qualidade para dar origem a um livro rigoroso, com qualidade narrativa, ou seja, legível, acrescentando, e corrigindo, o adquirido histórico sobre um momento decisivo da história portuguesa do século XX. Num país com muitos preconceitos académicos e em que cada vez mais, mesmo os jovens investigadores, se comportam como se existisse uma closed shop historiográfica nas universidades, este tipo de trabalhos tem muito mérito. Este tipo de livros são muito comuns nos países anglo-saxónicos e, embora não escapem a uma certa pecha jornalística com a “novidade” (como é a história interessante das estranhas injecções que Salazar recebia às centenas), nem por isso deixam de contribuir para um melhor olhar sobre a mais célebre queda da cadeira ocorrida em Portugal.

O livro mostra algo que é conhecido da história e da ciência política: a sucessão dos ditadores nos regimes autoritários e totalitários é um processo muito difícil e conflitual, que se conclui sempre com uma perda de legitimidade do sucessor, ou seja, de poder. O enfraquecimento do poder autoritário é um sinal de crise e de fim de regime, que quase todos, da Situação e da Oposição, perceberam nos eventos de 1968. A decisão do presidente da República Américo Tomás, que acabou, apesar das muitas consultas realizadas, por ser discricionária, ao recair sobre Marcelo Caetano, deixou a ditadura, envolvida em três guerras em África, numa crise de autoridade que nunca foi sanada e que terminou no 25 de Abril.

O livro mostra o ambiente entre a elite do regime, de intriga e competição pelo poder político, que para muitos portugueses, habituados a uma imagem monolítica do poder ditatorial de Salazar, representa hoje algo de novo e que muitos, erradamente, atribuem apenas à democracia. Na verdade, essa competição e os truques sujos que envolvia faziam parte do tecido do regime, como a consulta aos vários diários deixados pelas personagens gradas do salazarismo revela.

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Outro aspecto relevante que explica muito do “processo” político na ditadura, é a Censura. A Censura foi fundamental não só para que não se soubesse o que era “inconveniente”, como para controlar o tempo político. Neste período de crise grave do regime, os detentores do poder ditatorial moldavam pela Censura as escassas informações cuja divulgação era autorizada, mas, mais importante ainda, o seu timing, de modo a que existisse maior margem de manobra para os que mandavam “porem a casa em ordem” perante a confusão e crise gerada pela necessidade da sucessão. Uns percebiam que a sucessão devia ser acelerada para não se criar um vazio do poder, outros queriam mais tempo para manter uma noção de fidelidade a Salazar doente e melhor se posicionarem para a sucessão. A Censura dava a todos a possibilidade de terem o “tempo do poder” e não o “tempo da informação”.

O livro retrata também a entourage de Salazar, desde os que o serviam, como a sua governanta, ao calista que assistiu à queda, ao enfermeiro que o injectava, talvez de um opiáceo, aos agentes da PIDE que asseguravam a sua segurança e o seu transporte, aos seus escassos amigos, quase todos eles dos anos iniciais da ditadura. Salazar estava muito mais sozinho do que se pensava, e essa solidão reflectia-se nas dificuldades em escolher novos governantes, fora do exausto círculo mais próximo. A queda e a sua incapacitação, seguidas da situação de Salazar presidente do conselho, que pensa que é e já não é, com as suas oscilações entre a ilusão e a consciência do que se passava, representam uma espécie de labirinto borgeano, trágico e humano, mas que são uma metáfora sobre o fim do Estado Novo, que de facto com ele caiu da cadeira.

O último livro que Salazar leu foi sobre Maio de 68, e o último Conselho de Ministros a que presidiu foi igualmente dominado pelas suas preocupações sobre um movimento semelhante em Portugal. É igualmente irónico que não fosse a guerra colonial essa preocupação final, mas um movimento de estudantes franceses, em cujo centro não estavam os comunistas e socialistas, que ele podia reconhecer como familiares no seu histórico anticomunismo de Guerra Fria, mas antes uma entidade estranha e nova. Embora não se possa especular muito com os dados que temos, retirados do seu diário, os seus últimos pensamentos lúcidos revelam algo que sempre teve: uma grande intuição política para os riscos do seu mundo, claustrofóbico, conservador, autoritário e, no fundo, muito pobre. Tão pobre como o país que deixou cheio de ouro e de mortes de crianças à nascença.

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