As confissões de Michelle Obama

O livro autobiográfico da antiga primeira-dama dos Estados Unidos é o livro de capa dura mais vendido nos EUA e Canadá, dois milhões de exemplares desde que foi posto à venda, em Novembro. Tem revelações, mas não expõe a intimidade. E traz uma poderosa declaração de amor: “Os sentimentos invadiram-me rapidamente, uma rajada impetuosa de desejo”

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Michelle Obama Joshua Roberts/Reuters

A publicação de Becoming — A Minha História, de Michelle Obama, tornou claro que a antiga primeira-dama dos Estados Unidos ocupa um espaço que ultrapassa o da política. Como mostrou a sua tournée de promoção do livro, ela parece existir no espaço entre dois ícones a quem chama amigas, Oprah Winfrey e Beyoncé Knowles. A sua abordagem fica um pouco aquém do estilo totalmente confessional de Winfrey, mas vai mais além da protecção extrema da intimidade de Knowles.

O livro de Michelle Obama, recentemente editado em Portugal pela Objectiva, segue uma postura semelhante. Tem a sua dose de revelações — incluindo o ombro nu na fotografia da capa —, mas Obama ainda preza a sua privacidade — mesmo quando dá a sua opinião franca sobre Donald Trump e revela a sua luta contra a infertilidade.

“Penso que ninguém está verdadeiramente preparado para ler um livro de memórias como este, sobretudo vindo de uma antiga primeira-dama”, disse Shonda Rhimes, a produtora de televisão /Anatomia de Grey) que leu o livro antes de ser lançado.

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Livros de memórias de primeiras-damas são rituais de passagem, mas o de Obama é diferente, em virtude da sua identidade. A Minha História funde habilmente o seu estatuto histórico como primeira mulher negra primeira-dama com a narrativa americana. Ela escreve sobre os aspectos mais comuns da sua história e sobre a sua singular viagem — e de ser a única inquilina da Casa Branca que teve um antepassado escravo.

Michelle Obama mostra a sua complicada relação com o mundo político que a tornou famosa, mas o seu livro não é sobre os bastidores de Washington nem um ajuste de contas político — ainda que mergulhe no tema a fundo, destilando desdém por Donald Trump, que, na sua opinião, pôs a segurança da sua família em causa quando deu gás à conspiração racista contra o marido baseada na falsa informação de que este não nascera nos EUA.

“Todo o caso foi uma maluqueira mal-intencionada, claro, sustentada por uma xenofobia e um racismo mal disfarçados”, escreveu. “E se alguém perturbado carregasse uma arma e fosse para Washington? E se essa pessoa fosse atrás das nossas filhas? Donald Trump, com as suas insinuações ruidosas e imprudentes, pôs a minha família em risco. E isso nunca lhe perdoarei.”

É a linguagem mais directa e pessoal que já usou contra o Presidente Trump, que reagiu violentamente, agitando o dedo no ar enquanto disse que o livro encoraja a polémica. “Se é assim, eu devolvo: eu nunca lhe perdoarei [a Barack Obama] o que fez aos Estados Unidos. Eu nunca perdoarei o que ele fez em muitos aspectos, sobre os quais falarei no futuro.”

Mesmo os que seguiam de perto a vida de Michelle Obama na década e meia em que o marido foi um desconhecido político do Illinois têm uma nova luz sobre a forma como ela vê o mundo e sobre as pessoas e experiências que a moldaram.

As memórias estão divididas em três partes. A primeira secção, que se chama “Eu”, é um olhar sociológico profundo sobre Chicago e as pessoas e instituições da cidade. As partes sobre gentrificação, educação pública, raça e classes lembram que Obama se formou em Sociologia e estudou Estudos Afro-Americanos na Universidade de Princeton.

A segunda parte, “Nós”, é um olhar sobre o seu romance com Barack Obama, a construção da família e a sua procura por um trabalho de que gostasse mesmo. Começa com palavras que uma primeira-dama nunca escreveu sobre um homem: “Assim que me permiti sentir alguma coisa por Barack, os sentimentos invadiram-me rapidamente, uma rajada impetuosa de desejo, gratidão, plenitude, espanto.”

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O baile inaugural Kevin Lamarque/Reuters

A terceira parte, “Mais”, percorre a sua vida como figura pública. Contém a sua visão do que é o seu legado e do que alcançou enquanto primeira-dama, assim como o que sentiu ao viver debaixo de intenso escrutínio. Escreve que, ao fazer campanha para a reeleição do marido, em 2012, se sentiu atormentada pela forma como a criticavam e pelas pessoas que tinham uma opinião sobre ela por causa da cor da sua pele.

Pensou então no que devia e a quem: “Transportava uma história comigo, e não era sobre presidentes e primeiras-damas. Nunca me identifiquei com a história de John Quincy Adams da mesma forma que me identifiquei com a de Sojourner Truth.” [Adams quis abolir a escravatura em meados do século XIX, Truth foi uma conhecida abolicionista contemporânea.]

No prefácio, Michelle Obama promete dar a conhecer todos os contornos da sua vida — desde o congestionado apartamento na zona sul de Chicago, onde cresceu, até à casa com mais escadas do que aquelas que poderia contar. De ser considerada “a mais poderosa do mundo” a ser “classificada como uma ‘negra furiosa’”.

Michele Obama regressa à discussão do que considera ser a “ratoeira” da “negra furiosa”: “Eu era mulher, negra e forte, e isso, para certas pessoas... traduz-se em ‘furiosa’. Era outro cliché preconceituoso, um que sempre foi usado para encostar as mulheres das minorias nos cantos das salas... E isso fazia-me sentir, de facto, um bocado furiosa, e depois passei a sentir-me pior, como se estivesse a cumprir uma profecia feita pelos que me odiavam.”

É quando escreve sobre os seus 30 anos que Michelle Obama é mais reveladora; a forma como continuou a chorar a morte do seu querido amigo e pai; a forma como lidou com o dilema de todas as mulheres que trabalham e são mães — “Será que posso ter as duas coisas?”

Pela primeira vez, partilha também pormenores íntimos, por exemplo que ela e o marido tiveram dificuldade em engravidar, que teve um aborto espontâneo, e que as duas filhas nasceram por fertilização in vitro. Passou por grande parte destes momentos quando o marido fazia parte da legislatura estadual, deixando-lhe a ela a gestão do processo de fertilização, que envolve injecções.

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A receber os Turmp na Casa Branca, em Janeiro de 2017 EPA

Inevitavelmente, este livro de memórias será comparado com outros escritos por outras primeiras-damas. Porém, este é um livro à parte, tendo semelhanças com o de Laura Bush, Spoken from the Heart. As duas mulheres vão bem fundo nas suas vidas antes da presidência.

“Fiquei muito surpreendida, agradavelmente surpreendida, pela franqueza e pelo nível de abertura”, disse Rhimes, que leu as memórias de outras primeiras-damas e criou uma ficcional na sua série Scandal. “Gosto da honestidade, do sentido de humor e da forma maravilhosa como se refere ao seu romance e ao casamento e às atribulações do matrimónio e da maternidade, e a tudo aquilo com que nós mulheres nos relacionamos.”

Michelle Obama descreve, por exemplo, a felicidade que é a hora do almoço, familiar a todas as mulheres que trabalham e que têm filhos pequenos. Algumas vezes, saiu da secretária, comprou fast-food enquanto corria de um lado para o outro e sentou-se sozinha no carro a ouvir a rádio, “aliviada por ter feito tudo e impressionada pela sua eficiência”.

Os anos na Casa Branca são o período em que houve menos tempo para reflectir. Há momentos que passam a correr e outros em que Michelle Obama recita a sua abordagem metódica à programação das actividades de primeira-dama, detalhando intencionalmente a parte para crianças do seu programa “Vamos mexer-nos”, para evitar ser acusada de estar a exagerar. Diz que a separação entre o gabinete da primeira-dama e a West Wing (o centro do Governo) era sólida — conta que só uma vez o marido lhe telefonou da Sala Oval. Foi depois do tiroteio em Newtown. Lamentaram ambos o que aconteceu. Ela relaciona a violência com armas de fogo em Newtown com os tiroteios urbanos na sua cidade e expressa a sua incredulidade por o Congresso não aprovar legislação sobre o controlo de armas.

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Na Casa Branca com Jimmy Fallon no segundo aniversário do programa "Vamos mexer-nos" Reuters

Não há qualquer indicador de que Michelle Obama tenha tentado influenciar os planos e políticas do marido, que tenha alterado decisões ou que tenha tido o papel de conselheira informal. Em vez disso, o tempo dedicado à família tornou-se sagrado, com os assuntos sobre a escola das filhas a suplantarem os problemas do mundo. Depois dos jantares em família, ele ocupava-se com os seus relatórios, ela com os dela.

O exemplo mais grave que Michelle Obama dá de um confronto com a West Wing tem que ver com percepções. Pouco depois de ter chegado à Casa Branca, Michelle planeou dar uma festa de Halloween para o público e para as famílias de militares, apesar das objecções dos principais assessores da West Wing — em especial David Axelrod e Robert Gibbs —, que receavam que parecesse demasiado ostensivo num período de declínio económico.

“Da minha parte, o objectivo era correcto”, escreve sobre essa primeira festa.

Ao longo do livro, Michelle Obama deixa claro que se manteve cautelosa em relação à imprensa política e à atenção pública e que se sentiu, por vezes, intimidada, estereotipada e sem ajuda suficiente — em particular durante a campanha do seu marido em 2008.

“Se aprendi alguma coisa com a violência da campanha, das várias formas que as pessoas procuraram retratar-me como furiosa ou antipática, é que o julgamento público acaba sempre por preencher os espaços em branco. Eu sabia que nunca permitiria que me batessem outra vez.”

Muito antes de outros na Casa Branca, ela e a sua equipa usaram a cultura pop, o Twitter, o Facebook e o Instagram para anunciar as suas iniciativas, moldar a sua marca pública e a sua própria história. Foi ela quem impulsionou a sua própria popularidade.

O cuidado de Michelle Obama estende-se a partes das suas memórias. Há uma parte dela que se retrai. Tem um círculo sagrado de amigas que a manteve com os pés no chão na Casa Branca, mas só as refere de passagem. Fala sobre a influência central da sua mãe, e de como a educação das suas filhas a mudou. No entanto, é cuidadosa ao ponto de manter em privado os pormenores da sua vida em Washington.

O seu livro vai provocar uma discussão numa altura em que o Partido Democrata procura uma figura para as eleições presidenciais de 2020. Michelle Obama tenta pôr fim aos apelos para que se candidate à Casa Branca: “Nunca gostei muito de política, e a minha experiência nos últimos dez anos pouco fez para mudar isso. A maldade continua a manter-me desligada.”

Em relação a Trump, fala de como se sentiu furiosa quando ouviu a gravação em que ele se gaba de apalpar mulheres. “É uma expressão de ódio que parecia não ter lugar numa companhia educada, mas que ainda vivia na medula da nossa sociedade supostamente iluminada — viva e suficientemente aceite para que alguém como Donald Trump se desse ao luxo de não ter cerimónias.” Ela tentou travar a sua eleição.

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Michelle e Barack Obama com as filhas, Sasha e Malia Reuters

Michele Norris, amiga de Michelle Obama e antiga apresentadora da NPR, disse que o livro é sobre muito mais do que política: contém “lições para a vida real”.

“Ela fala com honestidade sobre a dificuldade de se fazer uma mudança. É honesta em relação à forma de se lidar com as pessoas que duvidaram dela e que a subestimaram”, disse Norris. “É honesta sobre o trabalho que é necessário ter em todo o tipo de relacionamentos.”

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post

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