Rebaldaria generalizada

A deputada Emília Cerqueira procurou reduzir uma evidente prática ilegal a um mero conhecimento de uma password alheia e à sua utilização para fins de trabalho.

Aleluia! O despudor, afinal, tem alguns - poucos é certo - limites! A deputada Maria Mercês Borges, apanhada pela comunicação social a votar pelo colega Feliciano Barreiras Duarte (onde é que já ouvimos este nome?), depois de ter admitido que, “se o computador estava ligado” ao seu lado, podia “ter carregado no botão porque a ideia que tinha era que ele ia voltar. Não foi com nenhum instinto de maldade, não foi por vigarice” e de ter afirmado: “Que atire a primeira pedra quem não sabe que isto acontece”, demitiu-se de todos os cargos em que representava o grupo parlamentar do PSD.

É certo que esta demissão, provavelmente, não representa uma punição para a deputada em causa, mas, pelo menos, representa um assumir de um erro, de ter feito o que não devia fazer, enfim, mostra ter algum decoro social e político, contrariamente à inenarrável deputada Emília Cerqueira, que nos quis tomar a todos por tolos ao afirmar-se minhota em defesa do deputado José Silvano, secretário-geral do PSD. Na verdade, quem pode acreditar que esta deputada não soubesse que estava a dar o seu secretário-geral como presente na Assembleia da República ao ligar, com a password daquele, o computador do mesmo quando essa é a forma de serem registadas as presenças no hemiciclo? Nunca reparou como é que era registada a sua própria presença desde que entrou como deputada para o Parlamento?!?

Verdade seja dita que houve um comentador num jornal que escreveu que “o que de facto houve foi um simples procedimento de trabalho, um acesso a material necessário que estava no computador de um colega. As explicações cabais dadas de forma desassombrada por Emília Cerqueira não deixaram dúvidas sobre o que se tinha passado”. Cabais e desassombradas?!? Na minha opinião, o comentador passou a merecer ser companheiro de bancada da deputada Emília, que, por sua vez, já ganhou a sua presença nas listas eleitorais do ano que vem com a defesa que fez do seu secretário-geral.  

A deputada Emília Cerqueira procurou – de uma forma pindérica, acrescente-se – reduzir uma evidente prática ilegal – provavelmente vulgarizada no Parlamento – a um mero conhecimento de uma password alheia e à sua utilização para fins de trabalho. E, vai daí, lançou-se na já famosa diatribe contra as virgens ofendidas uma vez que o que tinha feito seria uma prática comum – não distinguindo se a prática comum era trabalhar nos computadores alheios quando eles já estavam ligados e efectuado o registo da presença do deputado ou se era ligar o computador do deputado ausente e, assim, dá-lo como presente.

Curiosamente, as duas deputadas invocaram a normalidade ou habitualidade dos comportamentos em causa para justificarem o seu procedimento. A deputada Emília chamando virgens ofendidas, no sentido de hipócritas, aos que censuravam o seu comportamento e a deputada Mercês invocando um texto bíblico em que Jesus, perante os que queriam apedrejar uma mulher adúltera, lhes disse: “Quem não tiver pecado, que atire a primeira pedra” e ninguém atirou.

Temos de admitir que provavelmente estes comportamentos serão normais no Parlamento, como o de o deputado Silvano, no passado dia cinco, ter assinado a folha de presença na comissão para a Transparência – pequena ironia –, tendo-se ausentado de imediato mas, ainda assim, parece-me que, uma vez apanhados em flagrante, deviam, pelo menos, manifestar algum acto de contrição, o reconhecimento de que talvez não estivessem a proceder bem. E é nesse estrito sentido que devemos agradecer à deputada Mercês o seu modesto pedido de demissão.

Não se pense que as irregularidades e ilegalidades dos representantes do povo são um exclusivo nosso: em Inglaterra, em 2009, rebentou um escândalo com as despesas ilegais efectuados pelos membros do Parlamento com dinheiros dos contribuintes que, para além de ter obrigado numerosos deputados a terem de devolver avultadas verbas, levou quatro deles à prisão.

Longe vá o agoiro, claro, mas seria bom que o anunciado grupo de trabalho parlamentar para combater as presenças-fantasma não obedecesse aos mesmos princípios dos habituais inquéritos para levar até às últimas consequências em que tudo fica na mesma. Mas, infelizmente, todos desconfiamos que é isso mesmo que vai acontecer.

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