Muito barulho por nada: UE não dá a Theresa May a garantia de que ela precisa

Pela enésima vez, os líderes europeus disseram à primeira-ministra britânica que não aceitam mexer no acordo de saída, nem considerar novas "obrigações jurídicas vinculativas impostas à UE". "Isso é claro e cristalino", disse Jean-Claude Juncker.

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Reuters/FRANCOIS LENOIR

Garantias políticas sim, mas garantias jurídicas não: a resposta dos 27 chefes de Estado e de governo da União Europeia aos pedidos de ajuda da primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, para sossegar a fúria da Câmara dos Comuns contra o acordo negociado com Bruxelas para uma saída ordenada do Reino Unido foi um “nim”.

A primeira-ministra britânica chegou a Bruxelas revigorada pela vitória sobre a ala eurocéptica do Partido Conservador, que pusera em causa a sua liderança com uma moção de desconfiança no Parlamento. “May sobreviveu à votação, o que é uma boa notícia, significa que é com ela que continuamos a trabalhar”, congratulou-se a chanceler da Alemanha, Angela Merkel.

Mas May veio debaixo de intensa pressão, das mesmas forças eurocépticas e de toda a oposição no Parlamento, forçada a regressar a casa com algum tipo de concessão dos parceiros europeus. “Ouvi alto e bom som as preocupações daqueles que não se sentiram capazes de me apoiar, e sei que continua a haver preocupações na Câmara dos Comuns sobre esta questão do backstop, disse, à entrada para a cimeira.

O famoso “backstop” é uma cláusula de precaução inscrita no tratado jurídico para salvaguardar que a fronteira entre República da Irlanda e a Irlanda do Norte permanece invisível, e que só será accionada em último recurso, se entretanto o Reino Unido e a União Europeia não negociarem um novo acordo de parceria económica e política. Prevê que, nesse caso, os dois blocos formem uma nova “área aduaneira comum”, para assegurar que o comércio continua a decorrer sem fricções.

Aparentemente, os parlamentares britânicos temem que esta solução temporária possa tornar-se permanente e exigem ter uma palavra a dizer sobre a sua eventual entrada em vigor — como aliás exigiram pronunciar-se sobre o acordo de saída negociado com Bruxelas, num voto (em Janeiro) que ainda ameaça transformar o “Brexit” num salto para o precipício.

May acredita que será capaz de vencer as resistências dos legisladores se levar de Bruxelas “garantias políticas e jurídicas” de que o “backstop” não será aplicado indefinidamente. Volta a Londres sem nada: as conclusões adoptadas pelos 27 chefes de Estado e governo foram minimalistas no que diz respeito ao "Brexit", e não darão nenhum conforto à primeira-ministra britânica.

Os líderes prometeram continuar a trabalhar para obter a ratificação do acordo de saída que foi negociado por Londres e Bruxelas — e que como lembrou o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, também terá de ser aprovado pelo Parlamento Europeu — e a arrancar com as negociações para definir o relacionamento futuro "imediatamente" após o "Brexit". Garantias sobre o "backstop" não houve nenhumas.

Coube a Juncker e ao presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, resumir a posição dos 27 depois de terem ouvido Theresa May explicar o que pretendia. Os chefes de Estado e de governo simplesmente não podem dar à líder conservadora aquilo que ela precisa: uma declaração política ou qualquer outro documento que contenha "novas obrigações jurídicas vinculativas impostas à UE". "Isso é claro e cristalino", frisou o presidente da Comissão.

Logo no arranque da cimeira, os líderes tinham alertado — e “sem qualquer tipo de ambiguidade”, como frisou o Presidente francês, Emmanuel Macron — que as demandas de Theresa May não eram realistas. “Não estou a contar com nenhum resultado imediato”, admitiu a líder britânica.

No actual contexto, “só há espaço para uma discussão política, não há espaço para uma discussão jurídica”, sublinhou Macron, refreando as expectativas britânicas de uma alteração no texto do acordo de saída (com 585 páginas, três protocolos e vários anexos) por causa das questões de fronteira na ilha da Irlanda. “Não vamos mexer no acordo, não vamos renegociar um tratado que foi fechado depois de meses de negociações”, garantiu.

“Renegociar o quê?”, perguntava o primeiro-ministro, António Costa, acrescentando que todas as críticas vindas do lado britânico contra o acordo de saída diziam respeito a “pontos que já não é possível negociar mais, a não ser que haja uma iluminação divina que descubra algo que ninguém descobriu até agora”.

O primeiro-ministro referia-se a uma quadratura do círculo, que era “como ir mais além na compatibilização daquilo que é muito difícil de compatibilizar: a integridade do Reino Unido, a integridade do mercado interno, e a manutenção de uma fronteira aberta entre dois países que não fazem parte do mesmo espaço económico”, enumerou. “Tudo isto já foi uma construção muito difícil. As pessoas têm de perceber que chegamos a um ponto em que este é o acordo que existe, não há outro”, afirmou.

Ninguém na UE quer o “backstop”

Como reforçou o primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, “nenhum de nós poderia concordar que se viesse agora mexer no conteúdo do acordo, e principalmente no ‘backstop’, que está no texto do tratado para garantir que, aconteça o que acontecer, a fronteira entre a Irlanda e a Irlanda do Norte não será reposta”. Essa é uma condição essencial para o Governo de Dublin, que para defender os termos do Acordo de Sexta-feira Santa que pôs fim a décadas de violência sectária, conta com a solidariedade e o apoio inabalável dos restantes Estados membros.

Nas palavras do holandês Mark Rutte, “ninguém na UE quer que o ‘backstop’ seja accionado”, mas também ninguém vai enfraquecer este mecanismo de último recurso. “Se chegarmos a 2021 ou 2022 sem uma decisão sobre o nosso relacionamento futuro, temos de garantir a estabilidade na Irlanda”, justificou. Por isso, trata-se de “desmistificar” o que ficou escrito no acordo — em função das próprias linhas vermelhas que foram desenhadas pelo Reino Unido, recordou.

“Estaremos sempre dispostos a oferecer explicações, clarificações ou esclarecimentos que possam auxiliar os parlamentares [britânicos] a compreender melhor o acordo e a aprová-lo. Mas o ‘backstop’ é inegociável”, acrescentou Varadkar.

A dificuldade, para os 27 mas também para Theresa May, é precisamente acertar a fórmula desses esclarecimentos. Segundo o chanceler austríaco, Sebastian Kurz, a UE poderia considerar fazer uma declaração política para “fornecer uma melhor interpretação sobre aquilo que acordámos”, respondendo a eventuais dúvidas políticas que existam do outro lado do canal da Mancha. “E poderá haver algum tipo de explicação sobre a relação futura entre o Reino Unido e a UE”, estimou, sem grande certeza, porém, de que essas garantias sejam suficientes para satisfazer os críticos de Theresa May. “Os argumentos dos eurocépticos não são muito racionais”, lamentou.

Fontes ligadas às negociações diziam que, em função dos desenvolvimentos políticos em Londres, os chefes de Estado e governo da UE ainda poderão aceitar redigir uma nova declaração política, que seria anexa ao acordo de saída, a especificar um “horizonte temporal” de aplicação do “backstop” e uma “data desejável” para o fim desse regime, no caso de ser accionado.

Mas essa ideia, que não agrada a todos, ainda não está suficientemente maturada. Alguns líderes terão argumentado que a primeira-ministra britânica não devia pedir contrapartidas sem oferecer, ela própria, algum tipo de garantia de que o desfecho do processo será um “Brexit” ordenado e com o menor impacto possível para os europeus.

Foi esse o sentido das declarações de Juncker, no final do dia. "Não entendo por que persiste esta impressão, no lado do Reino Unido, de que deve ser a UE a propor uma solução [para ultrapassar o impasse político na Câmara dos Comuns]. É o Reino Unido que quer sair da UE, penso que o normal seria que fosse o Governo britânico a dizer-nos exactamente aquilo que pretende".

Orçamento da UE no Outono de 2019

Antes de se lançarem ao imbróglio do “Brexit”, os líderes iniciaram o debate sobre o próximo quadro financeiro plurianual para 2021-27, o orçamento geral da União Europeia para a próxima legislatura. Foi ainda uma primeira abordagem à questão: nas conclusões, o Conselho Europeu apenas observou que já existe “muito trabalho preparatório” e apelou à intensificação das negociações, de forma a “desenvolver uma orientação” para que ainda fosse possível “fechar um acordo no Outono de 2019”.

Sem querer desvalorizar a importância do “Brexit”, António Costa fez questão de sublinhar que esse era um debate “essencial” para Portugal, que está no clube dos países que desejam que esse dossier seja encerrado o mais depressa possível, “de forma a evitar uma descontinuidade e permitir uma transição harmoniosa” entre quadros comunitários.

O primeiro-ministro recordou quais são as “linhas de negociação fundamentais” para Lisboa: que o novo quadro financeiro corresponda às “ambições da Europa”, sem contudo sacrificar as políticas agrícolas e de coesão. “Também achamos que é uma boa ideia da Comissão ligar este quadro financeiro ao exercício do Semestre Europeu. Pode estar aí um embrião do futuro orçamento da zona euro”, considerou.

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