É Natal em casa dos Wittgensteins

O fascínio que a casa e as ideias do filósofo Wittgenstein exercem sobre os artistas contemporâneos é o tema de uma exposição no MAAT.

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Fotografias da série HW (2018), de Nuno Cera, uma das oito encomendas feitas a artistas para a exposição do MAAT

A casa nova estava terminada em Dezembro de 1928 e Margaret Stonborough-Wittgenstein decidiu convidar a família toda para aí passar o Natal, em Kundmanngasse, uma zona que nessa altura ainda era considerada arredores de Viena. Com a morte do pai e da mãe, o Palácio Wittgenstein já não era uma escolha óbvia e Margaret, grande senhora da sociedade vienense que tinha sido pintada por Gustav Klimt na altura do casamento, escolheu as festas de Natal para fazer a inauguração da Casa Wittgenstein, acabada de desenhar pelo irmão mais novo, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.

A exposição Haus Wittgenstein, Arte, Arquitectura & Filosofia, que está até 25 de Fevereiro no MAAT, em Lisboa, comemora exactamente este aniversário com sabor natalício. “A exposição parte dos 90 anos de habitação da casa. Wittgenstein envolve-se na construção em 1926 depois de um acontecimento traumático e o Natal é a primeira grande apropriação da casa pela família”, explica o curador Nuno Crespo (também crítico de artes plásticas do PÚBLICO).

Ludwig, o mais novo de nove irmãos, abandonara recentemente a sua carreira de professor primário, depois de um episódio em que foi acusado de ter batido num aluno, resolvendo esta nova crise vocacional e pessoal com um mergulho extravagante na profissão de arquitecto. É que a opção de ensinar alunos desfavorecidos numa zona remota da Áustria já fora considerada uma solução radical para uma desilusão precoce com a filosofia. Aos 29 anos, depois de passar pela Universidade de Cambridge, Ludwig Wittgenstein tinha já escrito o Tratado Lógico-Filosófico, no qual após defender que a linguagem deve ocupar o centro da filosofia termina a obra anunciando um voto de silêncio que vai durar mais de uma década.

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Fotografias da série HW (2018), de Nuno Cera, uma das oito encomendas feitas a artistas para a exposição do MAAT
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É natural que Margaret, a quem todos chamavam “Gretl”, estivesse preocupada com a vida do irmão e tenha ficado encantada com o interesse de Ludwig pela construção da sua casa. Entre os nove filhos de Karl Wittgenstein, um dos homens mais ricos do império austro-húngaro, três ter-se-ão suicidado, mesmo assim um número anormalmente elevado para esta Viena que também era de Sigmund Freud e que inventou a psicanálise.

Uma casa para os deuses

O projecto inicial da Casa Wittgenstein estava a cargo do arquitecto Paul Engelmann, discípulo de Aldof Loos, o homem que mais criticou a excessiva ornamentação da Viena do final do século XIX e início do século XX. O seu manifesto Ornamento e Crime tornou-se uma bíblia da arquitectura modernista.

Mas Paul Engelmann e Margaret Stonborough nunca se entenderam, tendo o interesse e mediação de Wittgenstein vindo ajudar a desbloquear o projecto. “Há um relato do encontro feito pelo próprio Paul Engelmann nas suas memórias de Wittgenstein, mas o que sabemos é mais por omissão. Percebemos que eles queriam um programa totalmente avant-garde, mas ao mesmo tempo uma casa burguesa.”

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Margaret Stonborough-Wittgenstein

O filósofo, que nunca estudou Arquitectura — era engenheiro de formação, como explica o curador —, passa a controlar todo o projecto, discutindo a casa ao milímetro. Obcecado com o rigor, está em tensão constante com os trabalhadores da obra e é conhecida uma carta, datada de 10 de Novembro de 1928, já com a casa praticamente concluída, em que acaba por agradecer a paciência da construtora, “pelo trabalho excepcional que fizeram”.

Segundo o relato de Hermine, que podemos ler no catálogo da exposição lançado a 8 de Dezembro, Wittgenstein exigiu da arquitectura um severo e rigoroso racionalismo, ele que considerava Adolf Loos uma alma gémea: “O Ludwig desenhou cada janela, cada porta e cada radiador na proporção justa e com uma exactidão tal que dir-se-ia serem ferramentas de precisão.”

Hermine, a irmã mais velha que fica com o palácio que era dos pais, para o qual Paul Engelmann tinha sido convidado a assinar uma renovação de interiores, fez uma descrição da casa e das suas reticências em relação ao resultado: “Embora eu admirasse muito aquela casa, soube, desde o início, que não iria querer lá viver, nem tão-pouco seria capaz disso. Porque aquela parecia ser uma moradia feita para os deuses e não para uma mortal insignificante como eu, de tal maneira que, inicialmente, tive inclusivamente de vencer um ligeiro sentimento de rejeição perante aquela ‘casa feita lógica’, como eu lhe chamava, tal a sua perfeição e escala monumental. Mas devo dizer que a casa assentava que nem uma luva à minha irmã Gretl.”

Embora Nuno Crespo diga que não se podem encontrar os princípios filosóficos de Wittgenstein directamente reflectidos na casa, lembra que o filósofo estabelece uma relação importante entre a arquitectura e o acto de pensar: “O trabalho filosófico — em vários aspectos, à semelhança do trabalho arquitectónico — é, no fundo, um trabalho sobre nós mesmos.” Sobre a nossa concepção do mundo e o que esperamos dele. “Wittgenstein quer construir um objecto geométrico puro, que não sofra transformações quando passa da ideia à realidade, do conceito ao objecto”, explica Nuno Crespo, autor de um livro sobre o pensamento estético de Wittgenstein (Wittgenstein e a Estética, 2011).

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Fotografia da série HW (2018)

Oito encomendas

Mas a exposição não é só sobre as dúvidas e polémicas à volta do processo criativo da Haus Wittgenstein — Paul Engelmann escreveu que Wittgenstein deve ser reconhecido como o arquitecto da casa —, mas igualmente sobre o fascínio que a casa e as ideias do filósofo exercem sobre os artistas contemporâneos. Esse olhar subjectivo é dado através da obra de 30 autores: de Vitto Acconci a Lawrence Weiner, passando por Ana de Almeida, Leonor Antunes, Art & Language, John Baldessari, Vasco Barata, Robert Barry, Mel Bochner, Pedro Cabrita Reis, Ricardo Carvalho, Nuno Cera, Gil Heitor Cortesão, Luísa Cunha, João Paulo Feliciano, Ângela Ferreira, Horácio Frutuoso, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, Sabine Hornig, Derek Jarman, Joseph Kosuth, João Louro, Luís Lázaro Matos e José Luís Quitério, Paulo Mendes e Pedro Machado Costa, Bruce Nauman, Olaf Nicolai, Gonçalo Pena e Julião Sarmento.

O arquitecto Ricardo Carvalho construiu para esta exposição o Tautological Book, um livro em que se juntam os cerca de 20 desenhos conhecidos que Paul Engelmann e Wittgenstein fizeram para a casa. “O Tautological Book é sobre um antes e um depois que existem em simultâneo no acto de fazer arquitectura”, defende o arquitecto. “Aborda as partes e o todo, o construído e o não construído, com o mesmo critério de expressão gráfica.” As plantas ou os desenhos de portas e janelas actuam no livro como uma caixa de ferramentas que Wittgenstein associava à linguagem, num processo tautológico sem conclusão. “A Casa Wittgenstein é sobre um deslize, de uma disciplina para outra. O filósofo, que era engenheiro de formação, testa as suas ideias sobre linguagem e repetição em arquitectura.”

Ricardo Carvalho vê a Casa Wittgenstein como a afirmação de princípios arquitectónicos estáveis e testados, como a simetria, mas não como um laboratório para novas ideias de como viver. A planta livre de Adolf Loos não está aqui presente e a casa feita pelo filósofo usa, aponta também Nuno Crespo, tipologias conhecidas, como o quarto de vestir, a sala de pequeno-almoço ou a sala de música.

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“Do ponto de vista da arquitectura a casa é um híbrido, semipalácio, semicasa-manifesto. Os espaços interiores estão mais próximos da arquitectura neoclássica e mais distantes da arquitectura de Adolf Loos com a qual são comparados”, diz-nos Ricardo Carvalho, também crítico de arquitectura. “A invenção de Wittgenstein concentra a sua energia nos elementos técnicos, como caixilhos, puxadores, aquecedores, vigas, entre outros, que perturbam essa serenidade neoclássica e atiram a casa para o domínio do rigor obsessivo com o detalhe. Austera como pensamos que foi o Movimento Moderno, mas afinal ainda mais cerebral — porque Wittgenstein estava mais interessado em relações matemáticas do que nas condições de vida — e a pensar numa arquitectura burguesa do século XIX.”

Quando a casa estava quase terminada, pediu que o tecto fosse levantado 30 milímetros, para que as proporções que estabelecera fossem executadas sem qualquer falha (3:1, 3:2, 2:1). “Diga-me”, perguntou um serralheiro a propósito de alterações numa das portas de metal, “um milímetro aqui e ali faz assim tanta diferença?” “Sim!”, exclamou Wittgenstein, noutra peripécia contada pela irmã Hermine.

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Ludwig Wittgenstein

Fétiche Filosófico, uma escultura de Ângela Ferreira, é outra das oito encomendas da exposição. “Ângela Ferreira pega num tema muito famoso que é o aquecedor de canto, fazendo uma referência aos princípios dos construtivistas russos, como as esculturas de canto, nomeadamente Tatlin.” E, com a exposição já montada, foi a vez de Horácio Frutuoso espalhar as suas frases pintadas à mão pelas paredes do MAAT, mostrando como a linguagem existe também na geração nascida na década de 1990: “Ahahah, not invited.” Convidados a fazerem obras novas, foram também Luís Lázaro Matos e José Luís Quitério, Nuno Cera, Ana de Almeida, Vasco Barata e Gil Heitor Cortesão. 

João Louro, que tem quatro obras nesta exposição, uma delas intitulada I Wish Wittgenstein Was Here (1992), diz que a sua proximidade de Wittgenstein vem do seu interesse pela linguagem, do qual a sua exposição Linguistic Ground Zero, uma individual também actualmente no MAAT, é um exemplo. A linguagem e a capacidade humana de transformar algo visível em símbolos é uma das invenções de que o género humano se pode orgulhar, acrescenta: “Para mim como artista que me interesso pelo conteúdo do mundo, por tentar compreendê-lo, mas também ampliá-lo e sobretudo comunicá-lo — e não apenas ser um observador desse mundo, que é outra forma de ser artista —, a linguagem é matéria primordial. Conhecer Ferdinand Sausurre ou Wittgenstein é fundamental, como ferramentas para escavar esse mundo.”   

O fétiche dos artistas por Wittgenstein, explica o curador, os motivos que levaram tantos a encontrar nele uma referência importante para o modo como pensam o seu trabalho, terá um pouco que ver com a forma como este filósofo que nunca estudou filosofia enfrenta sem os habituais constrangimentos a disciplina: “Tem uma escrita aforística com recurso a metáforas e a imagens muito próximas da realidade quotidiana.”

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Em cima, Wittgenstein’s House (1990), de Julião Sarmento; em baixo, Land’s End (2002), de João Louro

Mas “o efeito Wittgenstein”, acrescenta Nuno Crespo, explica-se também por o filósofo ter encontrado no gesto, na acção e na realidade a solução para as questões filosóficas que o apoquentavam. “É o modo como usamos as palavras no contexto da realidade, das nossas acções e dos nossos modos de vida, que confere à linguagem o seu sentido ou não sentido.”

Wittgenstein também libertou a linguagem e as palavras de serem meras portadoras de enunciados acerca do mundo, de estarem sempre a apontar para qualquer coisa que não são elas e que está para além delas, permitindo descobrir o potencial plástico, escultórico e evocativo da linguagem humana. “Esta descoberta foi decisiva para os artistas, como os conceptuais, que quiseram trabalhar não o que as palavras dizem, indicam e designam, mas antes as palavras enquanto matéria idêntica ao material de uma escultura ou de uma pintura.” O norte-americano Lawrence Weiner, por exemplo, considera as suas frases dispostas graficamente numa parede do MAAT como esculturas.

Se não podemos ver na Casa Wittgenstein a materialização das questões filosóficas de Wittgenstein, ela não deixa de ser uma obra com um contexto filosófico, defende Nuno Crespo no catálogo. Além de marcar o regresso de Wittgenstein à vida pública, o processo de construir a casa significa uma espécie de reconciliação com a realidade que pode ser confusa e contraditória, mas nunca deve ser deixada de lado: “Mais tarde, no seu trabalho filosófico, o chamado ‘segundo Wittgenstein’, chegaria então à ideia de que o uso tem na determinação do valor e do significado da linguagem.”

Para este Wittgenstein de Investigações Filosóficas, editado dois anos depois da sua morte, a filosofia é uma forma de vida e não um conjunto de questões reservadas a especialistas: “Esta importância da relação com a realidade é um aspecto muito relevante no conflito arquitectónico protagonizado pelo processo de construção da Haus Wittgenstein: o arquitecto, com formação em engenharia e matemática, foi conduzido por uma ideia utópica de projecto que ambicionava traduzir naquela construção, mas cedo se confrontou com o modo como a realidade — neste caso o cenário da construção de um edifício, os seus trabalhadores, a maneira como os materiais introduzem elementos imprevisíveis, etc. — desdiz as nossas ideias acerca dela e impede que lhe seja imposto um modelo.”

A irmã de Ludwig viveu na Casa Wittgenstein até morrer. Ela, que tinha visto os bens da família serem confiscados pelos nazis, ao mesmo tempo que descobria que era considerada judia, conseguira sair da Áustria em 1938 ajudada pelo dinheiro que estava a salvo na Suíça. Depois da II Guerra Mundial, voltou dos EUA, onde se exilara, e conseguiu que a casa lhe fosse devolvida.

Estamos de regresso ao Natal, desta vez ao ano de 1954, com Pierre Stonborough, um neto de Margaret que passou uma larga temporada na casa a convalescer, ainda a avó era viva. O testemunho deste consultor financeiro foi recolhido pela artista Ana de Almeida para a exposição do MAAT, em que este se recorda da vivência de uma casa que é actualmente o centro cultural búlgaro em Viena: “Para a minha avó a casa era, primeiro do que tudo, um lar. Sem dúvida.”

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