Liliana quis fazer formação pelo dinheiro, mas já fala no 12.º ano

Ficou desempregada quando engravidou da segunda criança. Tem somado acções de formação. E tomou-lhe o gosto.

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Liliana Morais tem 38 anos e está desempregada há três Adriano Miranda

Esta é a sexta de uma série de reportagens sobre pobreza. Acompanhe nos próximos dias o dossier O que é ser pobre hoje em Portugal?

Diziam que se havia alguém que pudesse fazer alguma coisa com o que aprendera numa cave apetrechada de computadores, na zona Oriental do Porto, era Liliana Morais, mas, pelo menos por enquanto, ela não se fia. “Não vou ter um trabalho a abrir computadores. Apesar de os ter aberto aqui, não tenho confiança para ir à casa de alguém abrir o computador.”

Fez uma formação em Manutenção e Reparação de Equipamentos Informáticos, um curso de Capacitação para a Inclusão, financiado pelo Fundo Social Europeu e destinado a pessoas maiores de idade que tenham entre o 4.º ano e o 12.º e estejam desempregadas há mais de um ano. E tem um discurso pragmático, esta mulher de 38 anos.

“Vim fazer esta formação pelo dinheiro”, afirma. O curso de 260 horas garantia-lhe 0,97 euros de bolsa por hora, sete horas por dia, cinco dias por semana, 90 euros de subsídio de alimentação, 63 de subsídio de transporte. Certo que 80% do valor da bolsa é cortado no rendimento social de inserção (RSI). “Mesmo assim, são mais cento e tal euros que entram. É uma ajuda, não é?”

Todos os cêntimos contam. Liliana está desempregada há três anos. Tem um filho de 12 e uma filha de três. Não se pense que o trabalho a assusta. “Comecei a trabalhar aos 16 anos. Colava entretela [com o calor do ferro de engomar]. Cosia botões. Limpava o atelier. Era aprendiz de costureira”, conta. Não se imaginava a esbanjar, mas via-se a pagar as contas e a guardar para satisfazer algum desejo ou acalmar alguma aflição.

Não fez carreira na costura. Mais queria lidar com gente. “Trabalhei em cafés.” Não faltava trabalho. Nos anos 90, Portugal andava eufórico. “Saia-se de um café e entrava-se noutro.” Esfumou-se a euforia, ficou a depressão. E essa apanhou-a já com um filho nos braços.

A crise alastrou pelo país adentro, fechando lojas, restaurantes, cafés. Muitos portugueses procuram alternativa lá fora. Nessa grande onda migratória foi uma comadre. E ela parecia feliz na Irlanda do Norte. Liliana pegou no filho e apanhou um voo.

Os portugueses aventuraram-se para aquela ilha na aurora do século XXI, atraídos por anúncios publicados na imprensa nacional que remetiam para agências de trabalho temporário. Concentraram-se em localidades como Portadown, Cookstown, Dungannon, Craigavon e Lisburn, para responder às necessidades de fábricas de processamento de carne e outras.

 “Ganhava muito mais do que aqui”, recorda. Só que havia algo mais importante. “Aqui, estava sempre com o meu filho. Lá, nunca via o meu filho.” O rapaz saia da escola às 16h, Liliana entrava na fábrica às 17h. Meia hora de mimo diário. Tinha de o deixar em casa de uma ama a dormir, porque trabalhava até às 5h. A situação melhorou quando conseguiu trocar de turno. Passou a entrar às 5h e a sair às 17h. “Assim, já conseguia estar com ele até às 20h ou 20h30.” Percebeu o desgosto do rapaz quando o mudou de ama. “Eu pedi-lhe para deixar o meu filho ligar ao pai, que ele devia ter saudades. Ele disse-lhe que tinha era saudades da mãe. Aquilo mexeu comigo.”

Não foi só isso que a fez regressar. Reconciliara-se com o pai do rapaz. O homem estivera lá e não arranjara emprego.

Liliana arrendou uma pequena casa num “ilha” – uma “ilha”, no Porto, é uma sucessão de habitações minúsculas construídas em fila (ou costas com costas) nos quintais das casas da classe média, um tipo de bairrozinho que surgiu na segunda metade do século XIX para responder ao grande afluxo de gente que viera do campo para a cidade. E arranjou trabalho na cozinha de um modesto restaurante. “Quando engravidei, a patroa mandou-me embora. Ela disse que já não gostava dos meus serviços. Arranjou uma desculpa, pronto. Estava lá há três meses. Não tinha contrato, não tinha nada.”

A população desempregada tem estado a diminuir (a taxa de desemprego recuou para 6,6% em Setembro, algo que não se via há 16 anos). Só que entre os que continuam desempregados aumentou a percentagem de pobres. Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística apontam para uma taxa de pobreza que passou de 44,8% em 2016 para 45,7% em 2017.

Liliana não tinha sequer direito a aceder ao subsídio de desemprego. E o namoro voltara a não dar certo. Era, outra vez, uma mãe solteira, agora de duas crianças, o que agrava ainda mais a situação. Nos agregados constituídos por um adulto com pelo menos uma criança dependente a taxa de risco de pobreza é de 28,2%.

Com duas crianças para criar, Liliana recorreu à Segurança Social. “Recebo 298 euros de RSI, 100 euros de pensão de alimentos, 240 euros de abono de família. Com o abono pago quase sempre a água, a luz, a MEO. Vem o RSI e pago a renda e a loja. Há uma loja à minha beira, onde vou buscar iogurtes, cereais e outras coisas e pago no fim do mês.”

Por mais que estique, nem sempre consegue chegar ao fim do mês. “Às vezes, a pessoa paga a renda e outras contas e já não tem que chegue para a luz, mas vai à avó e a avó empresta e depois dá-se”, diz. A família nunca lhe falta. “Preciso de qualquer coisa para os meninos e vou à minha mãe ou à minha avó. É por isso que, apesar de ter RSI, nunca precisei de ir a uma assistente social dizer: ‘Olhe, preciso para comer…’”

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Não quer que se pense que os filhos sofrem privações. “Eles almoçam na escola. Na escola, têm sempre carne ou peixe. Eu em casa também faço.” Material escolar a acção social garante. Passe não é preciso. “Acho que eles têm o que é necessário. Têm casa. Têm comida na mesa. Têm roupa.” Ainda há pouco, lhes comprou roupa e calçado. É que, entretanto, a vida melhorou. A Câmara do Porto atribuiu-lhe um subsídio temporário para a renda. São mais 150 euros durante 12 meses. “Vou buscar aqui e ali e consigo orientar-me.”

Não é que não tenha tido qualquer proposta de trabalho. “Do Centro de Emprego já me chamaram para trabalhar em lares, mas era à noite e eu tenho uma menina”, diz. Enquanto a menina não entrar na pré-primária precisa de um horário mais ajustado à ama da Segurança Social, que funciona das 9h00 às 15h00/16h00.

Jorge Vinhas, presidente da Associação C.A.O.S., sigla de Coragem Acima de Outras Situações, falou-lhe no curso de Manutenção e Reparação de Equipamentos Informáticos. “Ele sabia que eu andava à procura de qualquer coisa.”

Quando se conversa mais tempo com ela percebe-se que o dinheiro não foi a única motivação. “Lá em casa, fichas na parede sou eu que arranjo. Gosto dessas coisas. Achei o curso interessante e vim.”

Jorge Vinhas julga importante perceber que numa formação destas não importa só o que se aprende em termos técnicos. Estes cursos também ajudam a ganhar competência ao nível da expressão oral e escrita, a trabalhar o relacionamento interpessoal, a ganhar pontualidade, a ter noções básicas de informática, que podem ajudar quem está afastado do mercado de trabalho a preparar-se para uma formação profissional ou um emprego.

Liliana saiu da escola com o 6.º ano. Há uns anos fez um curso de geriatria que lhe deu equivalência ao 9.º. Feito o curso de Manutenção e Reparação de Equipamentos Informáticos, está de volta à CAOS para um curso de operador/a de logística.

Outras 265 horas, a 1,13 euros por hora, seis horas por dia, quatro dias por semana, com subsídio de alimentação, sem subsídio de transporte. Neste momento, está a aprender a fazer o currículo e a procurar trabalho. E já tem outras aspirações. “Queria ver se tirava o 12.º ano à noite, mas tenho de organizar a minha vida.”

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