França – Identidades malignas e revolta social

As reações identitárias ao atentado de Strasbourg e as teorias conspirativas que as acompanham lembram, na tragédia, que a crise francesa não se cinge à desigualdade.

As medidas sociais de Macron não são os acordos de Grennelle, de 1968, que puseram termo à mais longa greve geral da História da França. Dez milhões de grevistas paralisaram o país e na sua confluência com a revolta estudantil abalaram De Gaulle. Com Grennelle os trabalhadores garantiram um aumento de 35% no salário mínimo. As concessões sociais do 10 de dezembro não foram negociadas com ninguém e por isso não tiveram contrapartidas — nem mesmo o fim dos bloqueios das estradas ou da violência. A melhoria significativa do poder de compra da classe média francesa com o aumento do salário mínimo e a diminuição de impostos não será suficiente para travar os sectores mais radicais dos Coletes Amarelos. A rejeição de Macron alimenta-se da aversão às elites liberais enriquecidas em anos de crise, mas também do ódio ao cosmopolitismo e ao liberalismo político dessas mesmas elites.

Não nos enganemos: a questão identitária que atravessa e divide a França desde os anos 80 e que fez do triste debate sobre a “ameaça islâmica” uma especialidade francesa não desapareceu com a acuidade da crise social, estando bem presente na França profunda e semiurbana, origem dos Coletes Amarelos. O nacionalismo identitário é a ideologia não só da extrema-direita do RN de Le Pen, mas também da direita quase extrema, dos Republicanos de Wauquiez.

Em França, como na maioria dos países ocidentais, há anos que confluem duas crises: uma social, produto do caráter predatório do neoliberalismo a que a crise de 2008 deu uma dimensão sistémica, e uma identitária, produto do fim da sociedade patriarcal, da universalização dos direitos humanos e da crescente diversidade das sociedades, que o debate sobre as migrações, o islão e o terrorismo cristalizam. Foi a confluência dessas duas crises, aproveitadas sem vergonha, que elegeu Trump e levou Marine Le Pen à segunda volta das presidenciais.

O que torna a presente situação particularmente violenta e perigosa para a democracia é a confluência daquelas duas crises e a quase impossibilidade de, a curto prazo, as resolver. A solução da crise social pode ser construída com uma política económica de combate às desigualdades sociais, que abandone a convicção da teoria da destruição virtuosa e questione o paradigma de que a felicidade está no aumento do PIB e do consumo. A solução está na proposta de um novo modelo económico, mais amigo da natureza, com mais tempo para as coisas boas da vida, para a cultura e a convivência humana. Aliás, hoje, a mudança de modelo é condição para a sobrevivência da humanidade. O modelo predatório, na busca insensata dos aumentos de produtividade, de concentração urbana e motorização, fez da atividade humana o maior risco à vida no braseiro em que se está a tornar a Terra.

A superação da crise identitária é também essencial para a vivência em comum, deverá assentar no respeito pelas diferenças, para que deixemos de viver em sociedades dominadas pelo medo do outro, em que as mulheres continuam a ser vítimas de todo o tipo de violência, em que o racismo, designadamente o antimuçulmano, se banalizou, em que se vê no “imigrante” e no “refugiado” um invasor e no muçulmano um “terrorista”, em que se sonha com muros que alienem a miséria e as guerras dos “vizinhos”, em sociedades em que ganham voz os que negam o caráter universal dos direitos humanos e os ressentem como uma agressão aos seus valores, em que o nacionalismo é de novo o aconchego ideológico de muitos, que voltam a procurar nos símbolos identitários religiosos ou históricos o refúgio de um mundo cujos valores lhe são hostis.

A satisfação da sede de justiça social deve ser a primeira prioridade da União Europeia, pela razão simples de que está ao alcance dos governos e tornará menos popular o nacionalismo identitário. Exige, porém, que se assuma que não é apenas uma questão nacional, mas sim europeia — o que implica que a Alemanha reconheça que o seu egoísmo e arrogância teve graves responsabilidades na crise. É necessário um salto na integração federal da Europa, com a criação de um orçamento europeu ambicioso, que combata as desigualdades e salve o modelo social europeu, respondendo às reivindicações das classes médias. Tal exige, como afirma o manifesto lançado por Piketty, uma democratização do processo europeu.

A resposta à crise identitária não passa pela satisfação de preconceitos reacionários. Pelo contrário, são esses preconceitos que devem ser superados pela utopia da Europa da liberdade, da igualdade e da fraternidade. É fulcral um combate diário das forças progressistas contra o nacionalismo identitários anti-imigrantes, mas também contra o nacionalismo jacobino de uma laicidade radical feita religião de Estado e que destrói a tolerância religiosa e cultural.

A confluência das duas crises ameaça a própria democracia liberal francesa e com ela a União Europeia. Os Coletes Amarelos trouxeram para a ribalta a questão social, mas o atentado de Strasbourg pode trazer de novo a questão identitária para primeiro plano. É impreterível que os democratas franceses, de todas as correntes, se unam na procura de uma saída para a crise, que torne França um exemplo de um modelo de sociedade mais justa e hospitaleira, e os nacionalistas nos grandes derrotados desta crise. O futuro é incerto, mas pode e deve ser democrático.

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