Tancos: crónicas de um furto anunciado

Urge apurar quem, com responsabilidades políticas, teve envolvimento activo ou passivo neste episódio.

O caso do roubo de armas e munições em Tancos veio pôr a nu os pecados mortais deste regime: sistemas que não funcionam nem se regeneram, hierarquias que se desresponsabilizam e uma classe política sem estratégia, alicerçada em meias verdades e completas mentiras.

Em primeiro lugar, ficou patente que armas e munições à guarda do Exército português estão sem controlo. Militares de relevo na vida castrense vieram dar-nos conta pública de que, afinal, os inventários não estão actualizados e não são fiáveis. Uma absoluta irresponsabilidade: não se sabe quais são nem quantas são as armas à guarda das Forças Armadas!

Neste cenário, impróprio de um país europeu moderno, verifica-se um furto significativo de material, o que só foi possível por absoluta incúria de diversos agentes militares. O material não estava seguro, o sistema falhou em toda a linha.

Além do mais, a iminência de um furto tinha até sido denunciada às autoridades competentes que, perante a ameaça, nada fizeram. Quem ignorou a ameaça tornou-se, assim, cúmplice de um crime militar.

Perante este escândalo, esperava-se uma intervenção imediata. Que não teve lugar. A hierarquia, que nas Forças Armadas é clara e bem definida, falhou. Sem consequências. O chefe de Estado-Maior Rovisco Duarte manteve-se no cargo por mais de um ano. Marcelo Rebelo de Sousa exigiu publicamente apuramento de responsabilidades, esquecendo que o máximo responsável é ele próprio, enquanto comandante supremo das Forças Armadas. Exigência que foi repetindo à exaustão, sem sucesso, num processo de autoflagelação inconsciente.

E, se o roubo constituiu uma história lamentável, a devolução do material não foi episódio melhor. O arsenal foi resgatado, numa operação encenada que – sabe-se agora – foi do conhecimento de responsáveis nas Forças Armadas, o que prova que havia cumplicidades entre os assaltantes e alguns dos assaltados, tanto antes como depois do furto. Este facto constitui crime militar da maior gravidade, que nos desafia a reflectir sobre o estado geral das Forças Armadas.

A devolução do material, que envolveu Guarda Nacional Republicana, Polícia Judiciária Militar e outros agentes, foi propagandeada como um achado, mas foi afinal uma encenação, uma ‘inventona’. Falta agora saber quem planeou esta mentira, quem dela era conhecedor e quem a autorizou.

Urge pois apurar quem, com responsabilidades políticas, teve envolvimento activo ou passivo neste episódio. As suspeitas recaem inevitavelmente em Azeredo Lopes, António Costa e Marcelo. Os três estão vulneráveis nesta matéria.

Azeredo Lopes é acusado pelo autor material da falsa descoberta, major Brazão, de ter sido informado do plano urdido, através do seu chefe de gabinete. Já se demitiu de ministro, mas não pode demitir-se das suas responsabilidades. É claro que se o ministro era conhecedor do assunto, também o primeiro-ministro o seria, o que o torna cúmplice desta mentira colossal.

Finalmente, o Presidente da República, que se encontra na posição mais difícil. Não pode alegar desconhecimento sobre os diversos episódios desta novela, uma vez que é ele o comandante supremo das Forças Armada; é até incompreensível que Marcelo tenha vindo, de forma reiterada, proclamar a sua ignorância neste assunto.

Mas, por outro lado, se Marcelo conhecia o plano urdido para a devolução do material, passa a ser cúmplice de um embuste. O Presidente está vulnerável. De todos os actores nesta tragicomédia, Marcelo é o que tem um currículo mais marcado por episódios de meias verdades. Basta recordar o episódio denunciado por Paulo Portas, um jantar narrado por Marcelo que afinal não existiu (o caso “vichyssoise”), ou até as recentes notícias (provenientes de Belém) que davam conta do convite do PR a Marques Vidal para esta se manter na PGR, que esta prontamente desmentiu.

Para salvaguarda da imagem da Presidência, por respeito aos portugueses – e para evitar o total desprestígio das Forças Armadas –, urge uma clarificação cabal de tudo o que se passou. Tem que se identificar os responsáveis; tem de haver demissões; e prisões. O próprio modelo de funcionamento das Forças Armadas tem de ser profundamente revisitado.

Porque, queiramos ou não, o caso “Tancos” e a forma como hierarquias militares e políticos lidaram com o assunto constituem o prenúncio duma catástrofe institucional.

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