Espelho meu, espelho meu, diz-me que este corpo não é o meu

Girl coloca o espectador no quarto de Lara, uma rapariga trans que quer ser bailarina clássica. Propõe a comunicação com a angústia da intimidade - como num filme de terror. Uma primeira obra de um cineasta belga que já chegou aos Globos e está em campanha para os Óscares. Entrevista com Lukas Dhont, 27 anos, antes de aterrar em Los Angeles.

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Era preciso encontrar alguém de 15 anos que aguentasse o que acontece no filme. Seria possível? Mais de 500 jovens depois, eis que de repente apareceu Victor Polster... Menuet

Por esta altura, o belga Lukas Dhont, 27 anos, já aterrou em Los Angeles. É uma daquelas narrativas que pode calhar na sorte aos “pequenos” filmes. Tudo começou na secção Un Certain Regard de Cannes, em Maio: o seu Girl - O Sonho de Lara, primeira longa, a partir da história verídica de um rapariga trans que aspirava a ser bailarina, foi um pequeno acontecimento, e acabaria por receber a Câmara de Ouro, prémio atribuído às primeiras obras — questão de trabalho de realizador e de trabalho de actor, o jovem Victor Polster, Girl é um filme liberto do previsível. Agora, Girl, que transformou a história de Nora Monsecour na personagem de Lara, concorre para os Globos de Ouro e Dhont faz trabalho de promoção para os Óscares. No momento também em que se abate sobre Girl algo de previsível: as críticas sobre os seus supostos pecadilhos figurativos e sobre o facto de a história ter sido contada por um realizador e um actor cisgéneros.

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Lukas Dhont está em Los Angeles a promover a candidatura do filme aos Globos de Ouro e aos Óscares Johan Jacobs

Nora Monsecour, em carta publicada na Hollywood Reporter, já argumentou que essas críticas rasuram a sua identidade. E que Girl conta a história da sua adolescência “de uma forma que não mente, que não esconde” — o contacto com Lukas Dhont para a concretização do filme, precisou, ajudou-a a aceitar-se como mulher transgénero e a amar-se, “finalmente, sem fúria ou vergonha”. “Argumentar que a experiência de Lara como trans não é válida, porque [o realizador] Lukas [Dhont] é cisgénero ou porque temos um actor principal cisgénero ofende-me.”

Na verdade, Girl, que chega quinta-feira às salas portuguesas, coloca-se para além de um programa. A história de Nora/Lara é mesmo a da não pacificação da intimidade e da identidade. Como uma turbulência interior irredutível a qualquer normalização exterior — o mundo que rodeia Lara não é sequer intolerante à sua aventura, e no entanto...

Girl põe o espectador no quarto, e junto aos espelhos, de Lara, propõe uma comunicação com o silêncio e com a angústia — como num filme de terror. E há o jovem actor Victor Polster, que Lukas Dhont, nesta conversa, diz ter sido uma pérola.

Tinha 18 anos, estava na escola de Cinema quando leu sobre Nora Monsecour, uma bailarina trans. E estava, nessa altura, ainda a lidar com a sua sexualidade. Que momento foi esse, então, e como desembocou, anos depois, em Girl?
Foi de facto um momento crucial na minha vida. Muitas coisas estavam a unir-se.

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Sempre soube que queria fazer cinema. Sempre pensei que era a forma de me expressar e que conseguiria ser o mais honesto comigo próprio nos filmes: usá-los para falar do que me era pessoal. Foi nessa altura que li a história de uma rapariga trans de 15 anos, Nora, que queria tornar-se bailarina clássica. Interessou-me o facto de o mundo do ballet poder ser uma enorme metáfora de um sistema que reserva papéis para homens e para mulheres — e eis uma rapariga trans que procura uma via nesse sistema. A integração é uma necessidade das pessoas queer, trans, gay ou lésbicas, e senti uma ligação muito grande com Nora. A primeira ideia foi fazer um documentário. Mas naquele momento da sua vida Nora não queria ser filmada. Comecei então a pensar numa ficção.

Ao longo dos anos manteve-se em contacto com Nora. O projecto e a personagem autonomizaram-se como ficção — o realizador também fez o seu percurso... — ou mantém-se muito chegado ao retrato dela?
A personagem de Lara está muito próxima de Nora, que a inspirou, que foi o seu molde. Mas Lara não é Nora; é Lara. É tão próxima quanto é diferente. Lara tem todas as características que eu e Nora considerávamos essenciais, quando falávamos de fazer a personagem existir no ecrã. Mas outras vezes é outra pessoa, inspirada por vezes em mim. E talvez seja inspirada por outras personagens femininas do cinema.

Uma das surpresas é a forma como opta pelo que é interior e não pelo exterior — isto é, tudo o que rodeia a personagem, o contexto social e familiar, parece pacificado. Lara é aceite. Mas gradualmente o filme entra no quarto dela, aparecem os espelhos, e é aí que Girl propõe um diálogo do espectador com Lara, com os seus medos, com o medo.
É o que diz , porque, sim, é verdade que as relações mais próximas da personagem são sempre solidárias, não existe um conflito exterior directo no filme, nem com o pai, nem com familiares, nem com a equipa médica. Mas penso que há uma pressão externa, e isso no filme é simbolizado pelo mundo do ballet. Usamos o ballet como metáfora de um mundo que tem uma grelha, papéis definidos para homens e mulheres, o que para muitos é difícil de habitar. Era a história que queria contar. Pensei que havia potencial cinematográfico nesse mundo, que, aliás, é usado nos filmes de terror — por exemplo, Darren Aronofsky [O Cisne Negro, 2010].

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Quando vemos uma personagem trans ou LGBT, surge quase sempre associado o confronto com o exterior. É o que vemos nas notícias, é o que vejo em redor. Por isso quis concentrar-me na personagem, no facto de ela ser o maior antagonista de si mesma. Ou porque o mundo funciona assim, ou porque há forças destrutivas dentro dela, queria que fosse uma personagem em diálogo consigo mesma.

Começa a ficar rodeada de espelhos, que a obrigam ao confronto...
Sim, é muito preciso o que diz. Esse processo de criação de imagens, o reflexo, é complexo. Para Lara, o seu corpo, a sua imagem, é o seu maior conflito. O reflexo é algo muito susceptível de confronto para os adolescentes — e para muitas pessoas em geral. No caso de Lara isso é exponenciado. Queríamos que o protagonista e o antagonista fossem a mesma pessoa. Eu e o director de fotografia [Frank van den Eeden] usámos muito os espelhos, os reflexos. No mundo do ballet, nas aulas, os espelhos são omnipresentes. Lara quer escolher uma profissão que exige enorme confronto consigo mesma, com a sua aparência. É isso que é interessante naquela arena física: ela está lá, a tentar encaixar-se nos outros corpos, mas sabendo que não pertence ali.

A relação com o pai [Arieh Worthalter]... Eles formam um “casal”, não é? Ele é o homem e ela é a mulher da casa — porque a mãe é figura ausente. E há ainda uma criança, o irmão mais novo de Lara. Há aquele momento em que Lara fica inquieta quando o pai recebe uma “amiga”...
Estava interessado em criar uma família em que só havia um pai e em que uma relação — pai e filha — que costuma ser apresentada como problemática era afectuosa e respeitosa. E tornou-se interessante ter Lara como elemento de um triângulo familiar, no lugar da mulher da casa. Não estávamos à procura disso no argumento, mas acabou por ser importado, de forma livre, da realidade.

O desafio foi o casting. Foi aberto, não foi dirigido a rapazes ou a raparigas, qualquer candidatura podia ser válida.
Foi a fase mais difícil, porque era preciso encontrar alguém de 15 anos que aguentasse o que acontece no filme. Era possível? Vimos mais de 500 jovens, e a certa altura pensávamos que não íamos encontrar alguém que pudesse fazer a personagem. Queria encontrar alguém por quem me apaixonasse, tal como me tinha apaixonado por Nora — tinha de ter a mesma relação com essa pessoa de 15 anos. E de repente apareceu Victor [Victor Polster] e tornou-se claro, para mim, para a equipa e para Nora, que tínhamos encontrado uma pérola. Foi espectacular desde o primeiro momento, ficámos maravilhados, e isso nunca mudou. Havia gente adulta que chorava no set quando filmávamos cenas com Victor. Foi uma experiência intensa ver alguém tão novo e tão talentoso.

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É natural, para além do maravilhamento, querer saber como é que um adolescente entende a complexidade desta personagem. A pergunta que lhe fazem é: como é que um adolescente pôde ser protegido da perturbação que a personagem lhe poderia causar? Mas para a geração de Victor isso talvez seja naturalmente mais fluido, ele esteve menos em dificuldade do que imaginamos.
Sim, a geração de Victor é muito aberta a falar de género e de sexualidade. Quando lhe propus o papel, não houve dúvida, não houve problema. E, quando conheceu Nora, ficou claro por que estávamos a fazer o filme e por que é que ele estava a querer fazer a personagem. O papel, a sua dificuldade ou estranheza, nunca foi uma questão. Para ele a dança foi um desafio maior. Embora tenha treino de dança clássica, nunca se tinha posto em pontas — algo só para raparigas. Teve de aprender em três meses, isso, sim, foi  um desafio.

Dizer como dirigi Victor é complexo. Foi uma combinação de muitas coisas. Primeiro, foi importante, para alguém que nunca tinha actuado, encontrar a necessária confiança para se sentir livre no set. Durante três meses, antes da rodagem, eu, Victor, Arieh [Worthalter, o pai] e o intérprete da personagem do irmão mais novo, fazíamos tudo juntos, íamos jantar, jogar bowling, íamos ao cinema. Queria que se sentisse confortável com toda a gente. Era preciso criar uma zona de conforto, para que Victor, que era um adolescente de 15 anos, não congelasse.

A seguir, foi importante a preparação de quase seis anos em que conheci Nora e em que, por isso, conheci Lara. Isso permitiu-me conversar honestamente com Victor para lhe dizer o que pretendia. E depois ainda foi preciso treiná-lo em tudo o que fosse necessário. Teve terapia de voz — ele já de si é muito feminino, isso foi algo que pudemos utilizar. E tive a sorte de ter alguém como Arieh para me ajudar nos momentos mais emotivos com Victor. Quando se é actor e nunca se fez nada antes, é preciso ajudar o outro a chegar “lá”.

Dirigir Victor foi um trabalho de grupo — não fui só eu a dirigi-lo para que ele se elevasse até à emoção pretendida.

Como numa família...
Sinto, muito intensamente, que fizemos este filme dessa forma.

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O encontro com Nora definiu o seu lugar como realizador. Está iniciar um périplo de promoção para os Globos de Ouros e os Óscares. E depois?
Nora tornou claro que temos de ser verdadeiros connosco próprios. Foi uma lição a nível pessoal. A nível profissional, deu-me o material para falar sobre aquilo de que quero falar. Mas agora que o fiz preciso de me afastar. Preciso de fazer o trabalho de luto. Preciso de deixar partir [o filme] e encontrar algo de novo. Estou a escrever um novo filme, algo totalmente diferente. É assustador e ao mesmo tempo confortável.

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