Governo português não acompanha desconfianças em relação à Huawei

Executivo não se mete no acordo que a Altice assinou com a empresa chinesa e que é vista como um perigo em Bruxelas e foi afastada por outros governos.

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Alexandre Fonseca, CEO da Altice com Chris Lu, CEO da Huawei Portugal, depois de assinarem o acordo de colaboração para o 5G Rui Gaudêncio

Bruxelas diz que os países da União Europeia devem preocupar-se com os riscos de entregar a rede 5G a empresas chinesas como a Huawei, mas o Governo português não parece alinhar nesse clima de desconfiança. A credibilidade da Huawei é ciclicamente posta em causa desde 2012, por alegadamente estar sob a influência de Pequim e, desse modo, haver o risco de participar ou permitir acções de espionagem ou ciberataques no estrangeiro.

Questionado pelo PÚBLICO sobre a escolha da Huawei para parceiro tecnológico da Altice no desenvolvimento da próxima geração de rede móvel, o executivo liderado por António Costa limita-se a dizer que "o Governo não interfere no conteúdo de acordos celebrados entre empresas, desde que sejam respeitadas as normas legais aplicáveis e também o quadro regulatório e as decisões das entidades reguladoras".

Até hoje, a Huawei sempre se defendeu em público com o argumento de que concebe tecnologia segura e de que é uma empresa privada sem participação estatal. Mas estes argumentos não convencem Bruxelas, tal como não foram acolhidos pelos EUA, que proibiram o uso de tecnologia chinesa em projectos governamentais e de defesa. A Austrália, em Agosto de 2018, e a Nova Zelândia, no final de Novembro de 2018, seguiram as pisadas de Washington, proibindo a tecnologia da Huawei nas respectivas redes 5G nacionais.

O referido acordo com a Altice foi assinado a 5 de Dezembro, "apadrinhado" por Pequim e Lisboa, durante a visita do Presidente da China, Xi Jinping, a Portugal. No dia seguinte, a filha do fundador da Huawei e número dois da empresa foi detida no Canadá, a pedido dos EUA, por alegadamente ter feito negócios com o Irão. E dois dias depois do acordo assinado em Lisboa, o comissário europeu Andrus Ansip foi o porta-voz da desconfiança que reina em Bruxelas.

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Meng Wanzhou é filha do fundador da Huawei e responsável pelas finanças da empresa que tem 180 mil empregados Reuters

Foi neste contexto que o PÚBLICO dirigiu diversas perguntas ao Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP, a "secreta" nacional), ao Centro Nacional de Cibersegurança (CNCS) e à Presidência do Conselho de Ministros (PCM), dado que o SIRP depende directamente do primeiro-ministro António Costa. O SIRP manteve-se em silêncio, o CNCS remeteu para o Governo e a PCM reencaminhou as respostas para o Ministério do Planeamento e das Infra-estruturas, que respondeu através do gabinete do ministro Pedro Marques, quatro dias depois.

Foram três as perguntas enviadas ao Governo:

  • Que opinião tem o Governo sobre a participação da Huawei no desenvolvimento do 5G em Portugal, sabendo que se trata de uma empresa proibida por outros governos? gabinete do ministro evitou responder directamente a uma parte das perguntas
  • O governo considera segura e isenta de riscos a participação da Huawei em projectos de desenvolvimento do 5G em Portugal?
  • O Governo acompanha as preocupações manifestadas por outros Governos?

O gabinete de Pedro Marques preferiu uma resposta "redonda", dizendo que não interfere em negócios privados desde que as normas legais e regulatórias sejam respeitadas. Acrescentava ainda que "as referidas normas e decisões aplicam-se qualquer que seja a nacionalidade das empresas estrangeiras que sejam parte de projectos de desenvolvimento de empresas sediadas em Portugal". E terminava com a constatação do óbvio: "A monitorização das questões de segurança nacional e o desenho de medidas de intervenção, quando julgadas indispensáveis, são competência das entidades definidas pela lei portuguesa."

Dois dias antes de assinar o acordo com a Altice, sob o olhar atento do Governo português e do Presidente chinês, a Huawei tinha também sido apontada a dedo pelo chefe da "secreta" do Reino Unido. 

Numa rara conferência pública, Alex Younger, líder do MI6, disse que o governo britânico deveria decidir se se sente confortável com o facto de infra-estruturas de interesse nacional como a rede de telecomunicações estar em mãos chinesas. Já em Portugal, ninguém se mostra interessado neste debate.

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Alex Younger, chefe do MI6, a "secreta" britânica, numa rara aparição pública Reuters

Questionada pelo PÚBLICO, a Altice lembrou que já tinha feito experiências-piloto no 5G com a Huawei e recusou-se a responder à pergunta sobre a razão de a escolha ter recaído neste parceiro. A NOS, por seu lado, disse que não iria comentar o assunto. E a Vodafone Portugal foi a única das três grandes operadoras do país a responder ao PÚBLICO, para dizer que "trabalha com os principais fabricantes de tecnologia do mercado, entre os quais a Huawei", mas salientando que escolheu a Ericsson como parceiro no 5G.

Porque é que o 5G é tão importante?

A próxima geração de redes móveis, denominada 5G, ainda está longe de ser uma realidade comercial. Mas as características desta tecnologia colocam-na no centro do habitual furacão mediático e suportam muitas esperanças de quem está envolvido na Internet das Coisas, nos carros autónomos e de outras inovações.

Em comparação com as redes actualmente dominantes (3G, 4G e 4,5G), o 5G vai permitir transmissões maciças de dados a velocidades muito superiores. Mas se os ganhos nestes termos podem ser considerados normais numa perspectiva de evolução tecnológica, já a redução da latência (o tempo entre um estímulo e a resposta, ou uma instrução e a consequência) das redes é gigantesca e, segundo o chefe de tecnologia da Vodafone Portugal, o factor "mais disruptivo" do 5G.

Por outro lado, a nova geração – cujas frequências reguladas só deverão ser leiloadas em Portugal em 2020 – vai suportar mais dados, mais dispositivos e mais dados de utilizadores. O mesmo é dizer que é crucial para controlar à distância a nossa casa inteligente, para que dois carros autónomos comuniquem entre si ou para que tenhamos controlo sobre uma miríade de dispositivos que vão passar a estar ligados à Internet – a chamada Internet das Coisas.

Nesse sentido, entregar esta tecnologia a empresas sobre as quais recaem dúvidas de fiabilidade e credibilidade pode ser considerado um risco: no limite e num cenário hipotético, alguém que tenha acesso indevido às redes pode vir a controlar a nossa casa, o nosso carro – quem sabe, até mesmo um pacemaker?  

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Ren Zhengfei (dir.), fundador da Huawei, ao lado do Presidente chinês, Xi Jinping, em 2015 Reuters

A criação de um ex-militar do Exército Vermelho

A Huawei foi fundada em 1987 por Ren Zhengfei, um antigo militar do Exército Vermelho, e é líder mundial no mercado das infra-estruturas de Radio Access Network, um componente fundamental de um sistema de telecomunicações móveis. Em 2015, ultrapassou em receitas a Ericsson, a Nokia, a chinesa ZTE e a coreana Samsung, graças sobretudo a projectos que desenvolveu no Reino Unido, onde ganhou contratos no tempo do governo conservador de David Cameron. Um relatório de 2013 do governo britânico (PDF em inglês), que teve então de responder a críticas no parlamento de Londres, apontava que a tecnologia da Huawei era usada em 140 países.

Desde 2012, pelo menos, que existem dúvidas sobre as "implicações para a segurança nacional" do envolvimento da Huawei em projectos desta natureza e dos riscos de estar ao serviço da espionagem. Nesse ano, a Câmara dos Representantes dos EUA declarou que a Huawei e a ZTE, outra empresa chinesa, "não podem ser consideradas livres de sofrerem influências de Estados estrangeiros", aludindo aos riscos de estar submetida ao poder de Pequim. Esse risco, na opinião do actual Governo Trump, é maior actualmente, depois de a China ter aprovado uma lei de colaboração com as "secretas", que fez o Ocidente levantar o sobrolho.

Em causa, segundo a câmara baixa do Congresso dos EUA, estava o risco de estas empresas estarem obrigadas a colaborar com o poder de Pequim em actos de espionagem ou de serem usadas as infra-estruturas destas empresas para conduzir ciberataques.

Um ano depois, o Intelligence and Security Comittee do Parlamento do Reino Unido, criticou duramente a entrega à Huawei de projectos multimilionários envolvendo infra-estruturas de telecomunicações. Depois de analisar negócios que começaram em 2003, com a British Telecom e sem conhecimento prévio de Downing Street, o referido comité defendeu que "uma decisão tão sensível, com consequências potencialmente perigosas, deveria ter sido posta nas mãos de ministros" (parecer em PDF aqui).

Há uma miríade de casos, que nada têm a ver com a Huawei, mas que têm sido invocados com o objectivo de adensar as dúvidas sobre a segurança da tecnologia desta empresa chinesa e sobre a sua postura em relação em Pequim.

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Em primeiro lugar, os governos que afastaram a Huawei, alguns analistas e jornalistas que têm escrito sobre o tema têm invocado a Lei Nacional de Inteligência da República Popular da China (link para o texto original, ver tradução portuguesa via Google aqui), aprovada em Junho de 2017, para sustentar a existência de riscos acrescidos. O artigo sétimo dessa lei estipula que "todas as organizações e cidadãos deve apoiar, ajudar e cooperar com o Estado em matéria de Inteligência Nacional". O artigo 20.º por seu lado, diz que durante acções e contra-espionagem "organizações e indivíduos relevantes" devem "fornecer informação" e "não devem recusar".

Outro caso invocado agora remonta a 2016, quando nos EUA se descobriu que alguns modelos de telemóveis equipados com sistema Android reenviavam as SMS escritas nesses telefones para servidores na China. O caso não tem relação com a Huawei – a culpa era de outra empresa, a Shanghai Adups Technology –, mas tem sido usado para alimentar as suspeitas contra fabricantes chineses.

Para a Huawei, a detenção da número dois da empresa que no último Verão ultrapassou a Apple como segundo maior vendedor de telemóveis do mundo, vem na pior altura: o roadmap do 5G na Europa começa em 2019, dando início a um novo ciclo de investimento das operadoras em infra-estruturas. Alguns jornais descrevem a detenção como "uma pequena bomba atómica" ou uma nova "guerra fria", agora nas telecomunicações, para travar o crescimento de uma empresa que tem 180 mil empregados e que continua sediada na cidade onde foi fundada, há 32 anos, Shenzen.

O mercado europeu é o segundo maior para a Huawei, e por isso, a renitência de Bruxelas bem como os problemas detectados no Reino Unido, é um cenário que a administração considera uma séria ameaça. Em resposta ao Centro Nacional de Cibersegurança britânico, que identificou fragilidades numa parte do software e também nos processos de gestão de aplicações de terceiros, e às dúvidas que têm sido levantadas, a Huawei prometeu dois mil milhões de dólares de investimento para melhorar a forma como gere os desenvolvimentos de software. Enquanto isso, Pequim classifica a detenção de Meng Wanzhou como "hooliganismo desprezível". Para o governo chinês, as suspeitas sobre a Huawei fazem parte de uma guerra comercial contra a empresa que é líder de mercado.

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