Política, bombeiros, Sporting e chanfana. As mil vidas de Jaime Marta Soares

Tem 76 anos e há pelo menos 44 que ocupa cargos públicos. Já foi deputado, autarca e bombeiro. Teve uma curta carreira como guarda-redes e chegou à Assembleia Geral do Sporting com Bruno de Carvalho — a quem viria exigir demissão.

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Jaime Marta Soares é um dos portugueses que mais deram que falar em 2018. Primeiro, por ter feito frente a Bruno de Carvalho enquanto presidente da mesa da Assembleia do Sporting, num momento de tensão do clube. Nos últimos tempos, voltou a colocar-se debaixo dos holofotes enquanto presidente da Liga de Bombeiros, devido ao braço de ferro com o Governo, espoletado pela discussão sobre a lei orgânica da Protecção Civil, que os bombeiros consideram remetê-los para um papel secundário.

De acordo com a nova lei, a Protecção Civil deixa de organizar-se em comandos distritais e passa a ser desenhada consoante as áreas intermunicipais e áreas metropolitanas, em estruturas sub-regionais. Uma “manta de retalhos”, definiu Jaime Marta Soares, em que “ninguém comanda nada”.

“A autoridade [de Protecção Civil] deve fazer o que se faz em todos os países do mundo, que é coordenar e deixar o comando aos bombeiros e aos seus comandantes”, atirou Marta Soares no último domingo, com o tom cáustico que já lhe é característico, reivindicando autonomia de comando.

Quem o conhece refere o “mau feitio”, mas gaba-lhe a tenacidade. Afinal, não é qualquer pessoa que recebe o ápodo de “dinossauro” autárquico — esteve 37 anos à frente da Câmara de Vila Nova de Poiares — e acumula o cargo de deputado com o de fundador da Confraria da Chanfana, um dos seus pratos preferidos. O currículo tem dez páginas. Mas já lá vamos. É que antes de se ter lançado nas lides políticas, Jaime Marta Soares dedicou-se ao desporto.

Estreou-se como guarda-redes com a camisola do Poiares, clube da terra onde nasceu. Passou pelo Condeixa e pelo Lousanense antes de jogar pelo clube do coração, o Sporting. Esteve 20 dias à experiência no clube de Alvalade, mas não singrou. A sua passagem coincidiu com a ascensão de Vítor Damas, que lhe tirou o lugar.

As prioridades também eram outras. Numa entrevista ao Observador, Marta Soares admite que em primeiro lugar estava o trabalho com o pai, depois os estudos e, em último, o futebol, que chegou a conciliar com o andebol. No total, chegava a treinar quatro horas por dia. Quando se despediu dos campos já tinha sido eleito presidente da Câmara de Vila Nova de Poiares.

Despediu-se, mas não definitivamente. Muitos anos depois haveria de voltar com novas cores: desta vez como árbitro. Foi sol de pouca dura – esteve apenas três anos nesse papel e saiu devido aos conflitos que gerava.

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O “dinossauro político”

Jaime Marta Soares tem 76 anos e há pelo menos 44 que ocupa cargos públicos.

As sementes foram lançadas desde cedo: na juventude associou-se logo à oposição da ditadura de António Salazar e Marcelo Caetano. Tinha apenas 15 anos durante a candidatura de Humberto Delgado, às presidenciais de 1958, que apoiou. "Sujei muitas paredes”, contou ao Diário de Notícias em 2005. A família era de esquerda e, seguindo o exemplo, fez-se militante do MDP/CDE (Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral).

A sua estreia política teria de esperar mais uns anos, mas já estava para vir.

Corria o ano de 1974 quando assumiu funções na Comissão Administrativa de Vila Nova de Poiares. A votação fez-se ainda de braço no ar, com 700 pessoas, num jardim municipal. "Estava naturalmente no 25 de Abril, até porque antes nunca tive medo. No dia dessa votação, a 6 de Maio de 74, foram eleitas 13 pessoas e depois só três e eu era um deles, apesar de muito novo”, lembra Marta Soares.

Dois anos depois, foi eleito para a presidência da câmara municipal, desta vez já pelo PSD – e repetiria o feito dez vezes. Saiu em 2009, depois de 37 anos à frente dos destinos de Poiares. Só saiu por imposição legal, que limita a três o número de mandatos dos presidentes das câmaras, em 2013. Foi nessa altura que o PS venceu pela primeira vez em Poiares. “Modéstia à parte, se não houvesse limitação de mandatos, acho que ainda lá estaria”, disse ao Observador, em Maio de 2018.

Conciliou o cargo de presidente da câmara com vários outros – na Associação Nacional de Municípios Portugueses ou no Comité das Regiões, por exemplo.

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MANUEL ARAÚJO/LUSA

Foi eleito como deputado à Assembleia da República em 1979, na II legislatura, onde haveria de se manter até à X. Primeiro como independente, depois pelo PSD — ainda que com alguma relutância pois, como confessou ao Observador, sempre se sentiu “de centro-esquerda”.

Juntar-se ao PS é que nunca lhe passou pela cabeça, nem mesmo depois de António Guterres o ter tentado convencer a juntar-se às fileiras dos socialistas, quando ainda era independente. Foi, aliás, nesse dia que decidiu juntar-se definitivamente ao PSD, de onde nunca mais saiu.

“Utilizou óptimos argumentos”, lembra Marta Soares em entrevista ao Observador. “Eram tão bons que, assim que acabou a sessão, dirigi-me ao meu grupo parlamentar e disse que queria ser militante do PSD, antes que me arrependesse!”

Bombeiro desde os 19

Já era maior de idade quando foi criado um corpo de bombeiros na vila onde vivia, em 1962. Desde miúdo que ajudava as corporações profissionais a desbravar os melhores caminhos para o combate às chamas – afinal, conhecia a terra como poucos. A experiência que ganhou permitiu-lhe subir facilmente na estrutura. Rapidamente passou a ajudante de comando e depois a comandante, cargo que acumulou com o de presidente da câmara, da Federação dos Bombeiros de Coimbra (ao largo de 31 anos) e comandante da zona operacional da Lousã.

Jaime Marta Soares é presidente da Liga de Bombeiros Portugueses desde 2011. Vai no terceiro mandato. A última reeleição aconteceu em 2013. Legitimado novamente pelos bombeiros de todo o país, Marta Soares teve uma das suas principais bandeiras na criação de uma direcção nacional de bombeiros “autónoma, independente e com orçamento próprio”, por intermédio da alteração da lei orgânica da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC). Algo que não acredita que vá acontecer com a lei orgânica apresentada pelo Governo.

Foi reeleito, mas não sem críticas. Duarte Caldeira, que fez parte de uma lista da oposição nestas últimas eleições, acredita que a estrutura "necessita de renovação, sobretudo num momento difícil, em que tem revelado fragilidades e é preciso fazer, com a Liga, uma avaliação do sistema de socorro entregue a bombeiros", cita a Sábado.

Chanfana de Poiares, a melhor do Universo

Antes de Jaime Marta Soares chegar ao poder local, Vila Nova de Poiares não tinha nem rádio nem jornal. A rádio Santo André e o jornal O Poiarense foram os dois fundados por ele. Sempre a trabalhar para a autarquia, Marta Soares é ainda o responsável por duas outras invenções: o pastel típico de Poiares, criado de raiz para promover a terra, e a Confraria da Chanfana. O título “Vila Nova de Poiares, capital universal da chanfana” foi criado por Marta Soares em defesa do seu prato preferido.

Não foi a predilecção que o fez apostar na chanfana, mas um outdoor, como contou ao Observador. O político estava de viagem quando se deparou com um “Miranda do Corvo, capital nacional da chanfana”. Indignou-se. E respondeu à letra, sem hipótese de nova investida, declarando Vila Nova de Poiares como “capital universal da chanfana”. Mas não chegava. Faltava pôr Vila Nova de Poiares “no mapa” da iguaria. E conseguiu-o com a criação da Confraria, em 1999.

Ainda no âmbito da gastronomia é a Jaime Marta Soares que se deve a criação do pastel “típico” de Poiares, apelidado “Poiarito” – o primeiro nome foi “Jaimito”. É que foi o autarca que o criou de raiz e escolheu os ingredientes. Tudo para criar um produto turístico, que chamasse mais gente à vila.

A vida política, a dedicação aos bombeiros e o amor pelo Sporting deixaram marcas na vida pessoal. Tem quatro filhos, todos eles adultos e formados, mas Jaime Marta Soares lamenta o pouco tempo dispensado à família, a maior "sacrificada."

Em rota de colisão com Bruno de Carvalho

A sua passagem pelo futebol não se ficou pelos tempos de jogador nem de árbitro. Foi eleito para o Conselho Leonino em 2011 e eleito para a presidência da Mesa da Assembleia Geral do Sporting pela lista de Bruno de Carvalho em 2013.

Aos primeiros sinais de instabilidade na direcção, já em 2018, Jaime Marta Soares optou pela via diplomática, aconselhando o então presidente do clube. “Temos uma grande diferença de idades, mas mantinha um diálogo correcto, às vezes conselheiro, quando era possível, porque muitas vezes não se deixava aconselhar. Durante muito tempo, consegui um entendimento usando a minha idade. Até utilizava uma expressão que utilizo muitas vezes: ‘Olhe que o diabo não sabe muito por ser diabo, é por ser velho’”, contou ao Observador.

Mas os ânimos inflamaram-se na mesma, alimentados pelas intervenções de Bruno de Carvalho nas redes sociais. O ataque à Academia de Alcochete, em Maio deste ano, foi a gota de água para Marta Soares que o descreveu logo como “terrorismo” e não tardou em pedir a demissão de Bruno de Carvalho. “Com Bruno de Carvalho não há paz no Sporting”, disse à TSF.

A destituição de Bruno de Carvalho, seguida de novas eleições e do empossamento de Frederico Varandas aconteceram com Jaime Marta Soares na presidência da mesa. Todos estes momentos decisivos na história recente do Sporting. Deixou de o ser nas últimas eleições depois de cinco anos no cargo. 

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