Paris: A última barricada!

Os dezoito meses de Presidência Macron mostraram a enorme dificuldade de reformar a União Europeia, de fazer com que a integração concretizasse a esperança de uma Europa mais cidadã e menos injusta.

França pode bem ser o campo de batalha onde se joga a sobrevivência da União Europeia.

Em 2017, a vitória de Macron sobre Marine Le Pen tinha sido a boa notícia. A revolta eleitoral da classe média, desfavorecida pela globalização, que em muitos países europeus levara ao poder os nacionalistas, elegera em França um europeísta, multilateralista, que prometia agir em duas das questões essenciais do nosso tempo: o combate ao racismo identitário e a defesa dos acordos de Paris para combater o aquecimento global. Já na terceira grande questão, a injustiça social e os graves níveis de desemprego, Macron defendia que era na União Europeia que se devia procurar a solução.

Macron foi eleito cavalgando a desconfiança em relação aos partidos políticos, mas também o medo da vitória de Le Pen, o que criou a convicção de que em França as classes médias empobrecidas e indignadas com o nível da desigualdade pensavam encontrar respostas para as suas angústias na democracia liberal e na União Europeia.

Os dezoito meses de Presidência Macron mostraram a enorme dificuldade de reformar a União Europeia, de fazer com que a integração concretizasse a esperança de uma Europa mais cidadã e menos injusta.

Macron fez uma série de propostas para refundar a União Europeia: das listas transnacionais nas eleições europeias à taxação das transações financeiras e das grandes empresas da internet (GAFA, Google, Apple, Facebook, Amazon), à defesa de um orçamento para a zona euro.

Como outros antes dele, confrontou-se com o ceticismo alemão, acrescido de uma frente reaccionária, no poder em grande parte da Europa Central e agora também em Itália. Qualificando a União Europeia como construção vanguardista, longe do povo, sugeriu a sua refundação em bases democráticas, lançando para isso as consultas cidadãs. A iniciativa, porém, não foi além de um exercício de marketing político – todos tinham medo de dar aos cidadãos a palavra sobre a Europa.

Neste contexto de bloqueio europeu, o aumento da taxa de carbono, aplicada aos combustíveis e ao gás doméstico – essencial para a transição ecológica, no contexto dos Acordos de Paris –, foi visto pela classe média, mais afetada financeiramente pela medida, como prova de que nada mudara na condução política e que as desigualdades se continuavam a agravar. Por outro lado, os esforços para diminuir a dívida pública não davam ao governo margem para enfrentar, a curto prazo, a fratura social, e os cortes no imposto sobre as fortunas davam de Macron a imagem de um Presidente do sistema.

Na crítica à desigualdade, os Coletes Amarelos estão próximos dos Indignados espanhóis ou do Ocuppy Wall Street. Estes movimentos, porém, pertencem a outro momento histórico, em que os que se revoltavam tinham sólidas convicções ecológicas e antirracistas, defendendo o reforço da participação democrática. Foram esses movimentos que deram origem ao Podemos, em Espanha, e à campanha de Bernie Sanders, nos Estados Unidos, com um sólido compromisso com a democracia liberal.

Os atuais movimentos antissistema emergem no período das fake news, do ceticismo ecológico, dos nacionalismos identitários anti-imigrantes, do autoritarismo: no Brasil, levaram ao poder Bolsonaro, e em Itália deram origem a partidos populistas como o Cinco Estrelas, que acabou por se unir à extrema-direita de Salvini no governo. Os Coletes Amarelos mobilizam eleitores dos candidatos anti-europeus, Le Pen (42%) e Mélenchon (20%); só 5% e 6% votaram em Macron e no candidato do PS, respetivamente.

Le Pen e Mélenchon procuram tirar partido da revolta, mas podem vir a ser confrontados com a transformação dos Coletes Amarelos num outro movimento político populista.

Os Coletes Amarelos exprimem a revolta da classe média empobrecida, da França periférica, que já não acredita na via eleitoral. Os seus sectores mais radicais, apoiados por Le Pen e Mélenchon tentam impor na rua, pela violência, se necessário for, a dissolução do Parlamento e a queda do Presidente, substituindo o funcionamento das instituições da democracia representativa pelo “poder do povo”.

As suas páginas de Facebook estão repletas de teorias conspirativas – uma das mais populares refere-se ao Pacto de Marraquexe das Nações Unidas sobre as migrações, que entregaria o poder francês às Nações Unidas e iria permitir “a chegada de 480 milhões de migrantes para destruir a Europa”. O combate ao Pacto de Marraquexe é hoje a prioridade da extrema-direita anti-imigrantes de  Trump-Salvini-Orbán.

Muitos são os que se alegram com as enormes dificuldades de Macron. Em primeiro lugar, Marine Le Pen, por ele derrotada e humilhada no debate da segunda volta das presidenciais, e logo de seguida todos os que veem na França e no seu governo um último obstáculo ao projeto da internacional de extrema-direita promovido por Steve Bannon, articulador da campanha de Trump, a partir de Bruxelas. Regozijam-se os que apresentam o aquecimento global como invenção marxista: no Twitter, Trump apoiou os Coletes Amarelos, classificando a revolta como um combate contra os Acordos de Paris.

O fracasso de Macron não é a vitória dos “amanhãs que cantam” da revolução popular, como alguns irresponsavelmente nos querem fazer crer, mas da alternativa nacionalista autoritária.

Existe uma outra alternativa: perante o perigo existencial, a União Europeia deve anunciar uma reforma dos tratados que vá de encontro às exigências dos cidadãos, nomeadamente para rever os constrangimentos que coloca ao combate às desigualdades sociais, e que garanta o apoio necessário à transição ecológica sem a qual é a vida na Terra que está em risco.

Comissário das conferências de Serralves Utopias Europeias: O Poder da Imaginação e os Imperativos do Futuro?

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