Marcha atrás na votação do acordo enche o “Brexit” de May de pontos de interrogação

Perspectiva de derrota “significativa” no Parlamento leva primeira-ministra britânica a adiar votação. Nova data só depois do regresso a Bruxelas, onde procurará “garantias” sobre o backstop.

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Manifestação pró-UE em frente ao Parlamento britânico (Londres) Reuters/TOBY MELVILLE

A votação decisiva do tratado jurídico da saída do Reino Unido da União Europeia já não vai acontecer na terça-feira na Câmara dos Comuns, como prometido por Theresa May. Assumindo que o acordo alcançado com Bruxelas seria chumbado pelos deputados por uma “margem significativa”, May decidiu suspender a sessão plenária destinada aprovação ou rejeição do ‘seu’ acordo para o “Brexit” e aumentou o clima de caos e incerteza sobre o futuro do país

Sobreviver no cargo é cada vez mais um desafio para a líder do executivo. A primeira-ministra não marcou nova data para a votação e adensou a nuvem negra de um divórcio sem acordo. 

O entendimento do Governo britânico sobre a legislação que rege o divórcio é o de que o prazo para a realização da votação termina a 21 de Janeiro, mas a Câmara dos Comuns esclareceu, num comunicado via Twitter, que o mesmo se estende até 28 de Março de 2019 – véspera da data oficial saída. 

May anunciou ainda que vai regressar nos próximos dias à capital belga, para além de ir visitar outras capitais europeias, para tentar “obter garantias” sobre a controversa solução encontrada para evitar uma fronteira física na ilha irlandesa – o backstop – e arranjar uma forma de “capacitar” a Câmara dos Comuns para, quando for altura de se decidir sobre a eventual entrada em vigor da mesma, em 2020, ter uma palavra a dizer. A chanceler alemã, Angela Merkel, será uma das primeiras a ser consultadas pela primeira-ministra britânica já esta terça-feira. A informação foi dada pelo gabinete de Theresa May esta segunda-feira, citado pela agência Reuters.

“Ouvi muito atentamente o que foi dito dentro e fora desta câmara. E tornou-se claro para mim que, embora exista um apoio alargado a muitos dos pontos-chave do acordo, mantém-se uma preocupação generalizada e profunda sobre o backstop para a Irlanda do Norte”, começou por dizer May, no início de uma tensa e ruidosa sessão parlamentar. “Irei por isso adiar a votação e optar por não dividir a Câmara dos Comuns nesta altura”.

Inserido no acordo por imposição de Bruxelas, o backstop implica a constituição de uma nova área aduaneira comum entre o Reino Unido e a UE e o alinhamento total da Irlanda do Norte com as regras do mercado único, caso os dois blocos não alcancem um acordo de livre comércio até ao fim do período de transição – Dezembro de 2020, com possibilidade de extensão até ao final de 2022 – ou não encontrem uma solução tecnológica para evitar a reposição dos controlos alfandegários na linha de separação com a República da Irlanda.

Alvoroço em Westminster

Durante a última semana, a primeira-ministra britânica apregoou, prometeu e insistiu que a votação não iria sofrer alterações de agenda. Mas a perspectiva de uma derrota humilhante na câmara baixa de Westminster, face à forte oposição demonstrada por representantes de todos os partidos com assento parlamentar – incluindo de mais de 80 deputados do Partido Conservador e dos dez deputados do Partido Unionista Democrático (DUP) da Irlanda do Norte, que suporta o Governo –, somada aos apelos internos dentro do Conselho de Ministros, fê-la recuar.

O adiamento da votação foi, porém, recebido com bastante desagrado entre conservadores, trabalhistas, unionistas, liberais-democratas, nacionalistas escoceses e verdes. O próprio speaker da Câmara dos Comuns John Bercrow (conservador) afirmou que essa decisão deveria caber aos deputados, por uma questão de respeito e cortesia, mas um porta-voz do Governo confirmou mais tarde o cancelamento da votação, de forma unilateral.

Se, entre renovadas críticas, o DUP não mudou uma vírgula na postura há muito assumida, assente na certeza de que é obrigatório “deixar cair o backstop, a ala eurocéptica do Partido Conservador entende a marcha atrás de May como uma “confirmação da derrota” do seu acordo.

Mas para SNP e Liberais-Democratas é necessário ir mais além e por isso defenderam esta segunda-feira que o Partido Trabalhista tem o “dever” de apresentar uma moção de censura ao Governo. “Com o fiasco de hoje, o Governo perdeu toda a autoridade. Apoiaríamos totalmente o líder da oposição se avançasse para um voto de desconfiança, como seria seu dever”, disse Vince Cable, líder liberal-democrata. 

Horas antes, a primeira-ministra da Escócia e líder do SNP Nicola Sturgeon tinha defendido solução semelhante, numa mensagem partilhada no Twitter, na qual rotulou a decisão de May como uma “cobardia patética”.

Jeremy Corbyn rejeita, no entanto, avançar para uma moção de censura. “É inquestionável que May perdeu a confiança do Parlamento. Mas será mais fácil convocar a eleição necessária para pôr um ponto final a este bloqueio”, reagiu o Partido Trabalhista em comunicado, pouco depois de o seu líder tem defendido que o adiamento da votação só vem demonstrar que o Reino Unido “não tem um Governo em funcionamento”.

Para Corbyn só há dois caminhos para a primeira-ministra seguir: “Regressar a Bruxelas para renegociar o acordo ou convocar eleições para a população eleger um Governo que o possa fazer”.

No deal à vista?

Com um Conselho Europeu agendado para quinta e sexta-feira desta semana, resta saber o que pode May trazer de Bruxelas nos próximos dois dias. A hipótese de renegociar o backstop tem sido liminarmente rejeitada por Michel Barnier, que representa os interesses dos 27 Estados-membros da UE nas negociações, e pelos restantes líderes europeus. 

E esta segunda-feira, o presidente do Conselho Europeu Donald Tusk reforçou a postura europeia, ainda que assumindo abertura para discutir como se poderá “facilitar” a ratificação do acordo pelo Reino Unido. “Não vamos renegociar o acordo, incluindo o backstop, mas estamos preparados para discutir como facilitar a sua ratificação do Reino Unido. Uma vez que o tempo está a esgotar-se, vamos também discutir a nossa preparação para cenário de no deal”, publicou no Twitter.

O volte-face em Londres pode esbarrar na intransigência de Bruxelas e May tem perfeita noção disso. E por isso também não está disposta a cometer grandes loucuras nos próximo dias. Aos deputados deu a garantia de que o acordo será defendido até às últimas consequências e que o Reino Unido vai efectivamente abandonar a UE no dia 29 de Março de 2019, tal como agendado. Com ou sem acordo.

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