Os populismos do nosso tempo

Infelizmente, há mais confusão do que certezas sobre a natureza do fenómeno a que chamamos populismo.

Não há dia que passe sem que ouçamos a palavra “populista”. Trump é “populista”. Os "coletes amarelos" em Paris são “populistas”. O "Brexit" só podia ter existido em resultado de uma campanha de desinformação “populista”. É verdade que existe hoje um mal-estar na democracia que não existia há poucos anos atrás. Mas se queremos perceber as causas do que se está a passar diante dos nossos olhos em Paris, Washington, Brasília ou Manila, temos que começar por fazer luz sobre a natureza do fenómeno a que chamamos populismo. Infelizmente, há mais confusão do que certezas neste momento.

Há dias, o jornal Guardian avançava com a seguinte definição: “Um partido é considerado populista se apresenta a vida política como uma luta entre uma massa de cidadãos virtuosos e uma elite mal-intencionada e venal. Os partidos populistas, obviamente, assumem-se como representantes do bem ('nós', 'o cidadão comum') contra o mal ('eles', 'as elites')."

Uma definição mais vaga era difícil. Este mínimo denominador comum populista é insuficiente, e aumenta a confusão. Não explica, por exemplo, se os “populistas” são os políticos que usam a oposição entre “nós” e “eles”, se os eleitores que neles votam, ou se ambos. Daqui à vilipendiação daqueles que insistem em votar de forma “errada” (os “deploráveis” de Hillary Clinton) é um pequeno passo. A falta de precisão e clareza pode levar a que se ignorem as causas do atual descontentamento com as nossas democracias. Na realidade, se continuarmos a ignorar a natureza do fenómeno político mais importante do nosso tempo, o mais provável é que acabemos por agravar os problemas que lhe deram origem. A única alternativa realista é tentar compreender porque é que as pessoas insistem em protestar e votar nos candidatos “errados” ou “perigosos”. Para isso, é necessário perceber a natureza do populismo.

O populismo não é uma cor partidária, como a ideologia. Dizer-se que “o partido A é populista” ou que “o partido B não é populista” é um erro, tal como é espúrio contar o número de vezes que o político C usa a palavra “povo”. O populismo é uma forma de fazer política. Significa isto que todos os partidos e políticos, de A a Z, podem comportar-se de forma populista, dependendo das circunstâncias. E quanto melhor percebermos como o populismo funciona, melhor perceberemos as suas causas e se devemos estar preocupados.

Um político age de forma populista se falar às emoções e aos interesses de um eleitorado que se sinta, por exemplo, indignado com a crescente desigualdade de distribuição de rendimentos. É injusto que assim seja, e basta que alguém o diga com todas as letras para levar as pessoas que se sentem injustiçadas a sair de casa para votar ou protestar. Mas a lógica populista não acaba aqui. Se acabasse, nada distinguiria populismo de movimentos como o Black Lives Matter e a sua justa indignação contra o racismo.

O populismo nasce daqui, mas só se desenvolve quando se decide apontar as responsabilidades por esta situação a um certo grupo. Quem este grupo é ao certo não interessa. O que importa é assacar a responsabilidade, quando não mesmo a culpa, quer seja à caravana de emigrantes ou à elite capitalista, pelos problemas reais que as pessoas enfrentam no seu dia-a-dia. Os “emigrantes” ou os “ricos” são alvos fáceis porque ambos podem ser vistos como rivais na procura de emprego, no acesso à saúde, ou no aumento do rendimento: é porque “eles” ficam com tudo e não sobra nada que “nós” estamos a passar mal. É neste ponto que o populismo ameaça a democracia. Se nos opormos a “eles” se torna mais importante do que sabermos o que “nós” queremos vir a ser, a cooperação e o compromisso tornam-se muito difíceis, se não mesmo impossíveis.

Paradoxalmente, é exatamente aqui que reside a virtude do populismo. Democratas e populistas falam a mesma linguagem. Ser-se democrata é falar e agir em nome do “povo”. É igualmente em nome do povo, um novo povo a construir a partir do cumprimento das promessas democráticas de igualdade e respeito próprio, que um político age de forma populista. Nem uns nem outros são saudosistas. Ambos falam ao futuro. Mas se os democratas aceita projetos coletivos a médio e longo prazo, à luz dos quais tornam aceitáveis sacrifícios “aqui e agora”, os populistas propõem-se cumprir as promessas democráticas num futuro imediato, com fórmulas simplistas quando não demagógicas. Isto sucede porque a indignação, o desespero, por vezes mesmo a inveja, alimentam-se de circunstâncias reais da vida de todos os dias. Este sofrimento vive no presente, não nas memórias de erros passados ou oportunidades perdidas; promessas a longo-prazo, sobretudo as tecnicamente muito complexas, são vistas com desconfiança. É “aqui e agora” que se tem que pôr termo a este sofrimento imerecido. É por isto que o populismo é um barómetro da saúde da democracia e, simultaneamente, um dos seus mais perigosos inimigos.

Até por esta relação ambivalente que o populismo tem com a democracia é fundamental tentar compreender melhor como funciona. Podemos começar precisamente por evitar perguntar se há partidos populistas entre nós – uma pergunta não só errada, como estéril – e tentar perceber antes em que circunstâncias certos partidos, movimentos ou políticos tentam conquistar votos convencendo os seus eleitores de que os problemas que estes enfrentam se devem a outro grupo de eleitores – e não à ação de quem os governa ou representa. O facto desta lógica populista de fazer política ser feita, por norma, em nome de um novo Portugal “mais moderno”, “mais justo” e “mais solidário” torna a destrinça entre populismo e democracia muito difícil. Mas confundi-los acarreta custos elevados. Continuar a ignorar o sofrimento imerecido da maioria da população, em particular os mais desfavorecidos e sem voz. Continuar à procura de “partidos populistas”, à medida que no nosso sistema político a forma populista de ganhar votos se reforça sem que alguém se pareça dar conta. Continuar a minar a confiança em projetos coletivos com fôlego e rasgo, quase sempre postos de lado entre nós em favor de remendos habilidosos só porque se atenta nos custos político-financeiros a curto prazo e se desvaloriza os seus benefícios a longo prazo.

Não será que estas razões bastam para começarmos um debate sério sobre os populismos do nosso tempo?

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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