Cidade em tempo de muros

Construir uma barreira é a melhor maneira de se criar a ilusão que se está a fazer algo quando não se está verdadeiramente. Quase toda a gente o sabe. E, no entanto, continuamos a querer construir muros.

Muros há muitos. Sempre houve. E continua a haver. É uma aspiração com saída nos dias que correm. E não é apenas Donald Trump que sonha deixar obra feita na zona fronteiriça com o México. Ainda há dias, o partido da extrema-direita espanhola Vox propôs a edificação de um na fronteira de Ceuta e Melilla — onde já existe uma vala —, de forma a conter a entrada de imigrantes oriundos de África. Há-os, aliás, para todos os gostos e bolsas.

Na Arábia Saudita, desde 2007, existe um modernaço dotado de sistema de vigia por radar, ao largo da fronteira com o Iraque. Consta que a barreira electrificada de Caxemira na Índia também é requintada. O que separa Israel da Palestina não é para todas as carteiras, custando cerca de um milhão de dólares por quilómetro ao governo israelita. Mas não tem que ser assim. No interior de Pádua, Itália, existe um mais em conta, para isolar um bairro de imigrantes africanos, e em Belfast, na Irlanda do Norte, o que divide protestantes e católicos também tem um ar mais modesto.

Em Lima, no Peru, existe um que personifica muitos outros espalhados pelo mundo fora. Começou a ser construído em 1980 e hoje já tem mais de 10 quilómetros, separando um dos bairros mais ricos de um dos mais pobres da capital peruana. Quem habita na margem pobre chama-lhe “muro da vergonha” olhando-o como exemplo supremo de discriminação. Para quem mora do lado rico trata-se apenas de uma questão de segurança.

Houve um tempo em que se achou, romanticamente, que Berlim era o fim da indústria dos muros. Mas eles foram germinando. Símbolos da impotência, do fracasso do diálogo, da dificuldade em pensar-se com o “outro”. Vive-se na era de globalização, mas há cada vez mais barreiras. O pretexto é sempre a protecção perante os que não conhecemos bem, os “diferentes”, os que criam “mau ambiente”, e a receita também: muros, estados policiais ou políticas públicas a favor de interesses específicos.

No interior das cidades tendem a ser mais refinados. Podem ser menos ou mais visíveis, materiais ou imateriais, mas estão sempre presentes. O propósito é dividir ou apartar. O que não é fácil no mundo de hoje. Até se pode habitar num luxuoso condomínio privado, mas ainda assim o contacto com desconhecidos, de origens, credos, classes, idades, etnias, opções e estilos de vida diversos, é inevitável. Estamos obrigados a coexistir. E, no entanto, passamos o tempo a procurar refúgios de semelhança. E ao fazê-lo privamo-nos de entender, negociar e experimentar, pondo-nos em contacto com a nossa diferença e dos outros, como é inevitável que aconteça num espaço de diversidade como é uma cidade. Quanto mais tempo existirmos num meio uniforme, apenas na companhia de iguais, sem nos expormos às tensões, não nos esforçando por traduzir outras formas de estar, maior será a dificuldade em alcançar modelos de coabitação, seja entre países, cidades ou bairros.

Nas últimas semanas muito se falou disso em Lisboa a propósito da vedação projectada para o miradouro do Adamastor ou do possível gradeamento à volta da praça do Martim Moniz. Sim, são fenómenos localizados. Mas os princípios norteadores são os mesmos em quase todo o lado. Expressão de desistência perante problemas de difícil resolução. Lei do simplismo. Proibir em vez de analisar. Demonizar em vez de agregar.

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Miradouro do Adamastor vedado Daniel Rocha

Nada de novo. Basta perceber a estratégia dos populismos hoje em dia que é construir a imagem clara de um inimigo. Podem ser imigrantes, estrangeiros, os “drogados”, um clube de futebol ou um país. A partir de determinado momento tudo o que acontece se deve a essa entidade hostil. Dessa forma ocultam-se as debilidades próprias e simplifica-se grosseiramente uma realidade complexa. Passa a existir só um foco que encobre tudo o que acontece à volta. No Brasil votou-se em Jair Bolsonaro na expectativa de que resolva os problemas de corrupção e violência urbana, que se associou a um partido, sem se ter em atenção que não só dificilmente isso ocorrerá, como é a própria democracia que se está a pôr em causa. No Adamastor, quem defende a vedação e a estetização do lugar fá-lo na expectativa de erradicar dali os que são considerados indesejáveis, numa visão parcelar da realidade, que não se detém sobre o conjunto de questões que ali se projectam e como se relacionam entre si.

E sem essa reflexão nunca se chegará a perceber que tipo de intervenção poderá ser mais satisfatória para uma maioria de pessoas. É aí que surgem os muros. São sempre a solução casuística, nunca a definitiva, porque se intervém sobre os sintomas e não sobre as causas, acabando por se criar a médio e longo prazo mais problemas do que aqueles que se tenta resolver. Construir uma barreira é a melhor maneira de se criar a ilusão que se está a fazer algo quando não se está verdadeiramente. Quase toda a gente o sabe. E, no entanto, continuamos a querer construir muros. É caso para dizer que os piores estão em algumas cabeças mais duras do que betão.

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