Uma ilha irrepetível

O relato fulgurante de um lugar num momento em que tudo parecia possível. A guerra tinha acabado, Nova Iorque apresentava-se como exemplo para o mundo e Manhattan o seu grande vigor.

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Jan Morris olhou 1945 40 anos depois a partir da varanda do hotel Mayflower, Central Park West COLIN MCPHERSON/CORBIS VIA GETTY IMAGES

“Em 1945, Nova Iorque via-se (...) como a representante de um povo ‘para quem nada é impossível’.” A afirmação da jornalista e escritora galesa Jan Morris surge logo no início de um livro com assumida carga elegíaca acerca de uma cidade no auge da sua confiança, com um bairro-símbolo da ousadia e do arrojo, da juventude e da determinação de quem não está disposto a ser menos do que um exemplo de civilização. Manhattan’45, o mais recente título de Morris em Portugal, é um misto de crónica, ensaio, relato de viagem que tenta captar o momento excepcional de um pequeno território geográfico cheio de simbolismo. “Esta pequena ilha, de 5600 hectares de área, 20 quilómetros de comprimento, quatro quilómetros de largura no seu ponto mais largo, 82 metros acima do nível do mar no seu ponto mais elevado, com 1,9 milhões de habitantes — esta ilha apinhada era a cabeça, o cérebro, a essência da América, e a ideia da América era então todo-poderosa.”

A América ganhara a guerra sem sofrer a destruição física dos seus aliados. Nova Iorque não fora bombardeada; quando o Queen Mary atracou no cais 90, no West Side, os soldados a bordo, regressados da Europa devastada, repararam na sua arquitectura intocada. “Embora faltassem dois meses para a vitória sobre o Japão e para o fim da Segunda Guerra Mundial, Manhattan sabia já que estava prestes a entrar num esplêndido apogeu”, escreve Jan Morris neste livro centrado “na vida pública da cidade, mais do que na vida privada”.

Publicado originalmente em 1987, é um retrato social, político, cultural e arquitectónico do núcleo de Nova Iorque no fim da II Guerra e contém a essência desse pedaço de terra: a sua eterna capacidade de transformação e permanente mutabilidade, “uma cidade que nunca é a mesma durante uma dúzia de anos seguidos”, como notou um artigo da Harper’s Bazar — aqui citado por Morris — ainda em meados do seculo XIX. “A autora deu-lhe o título Manhattan’45 ‘porque soava, em parte, como o nome de uma arma, e em parte com uma marca de champanhe’, poder e festa”, sublinha Carlos Vaz Marques no prefácio ao mais recente título da colecção de viagens que dirige na Tinta da China.

Jan Morris olhou 1945 quase quarenta anos depois a partir da varanda do hotel Mayflower, em Central Park West. A sua atenção para aquele período da história em particular foi despertada por um gesto do quotidiano; num dia de celebração, a companhia de telefones ofereceu-lhe um narciso quando ela caminhava por Columbus Circle, hábito que vinha do fim da guerra.

É uma viagem geográfica. Podemos seguir os passos de Morris de Leste a Oeste e de Sul a Norte da ilha, notando-lhe o que permanece e os contrastes. A escrita clara, tocada pela ironia, o espanto e a curiosidade satisfeita por uma exaustiva pesquisa histórica que ao leitor nunca sugere exaustão, narram um território num momento “irrepetível” da sua existência, com as personagens que a habitam e os seus costumes, num vislumbre das multidões de que muitos anos antes já falara Walt Whitman.  

Os negros, os judeus, os italianos, irlandeses, polacos, os chineses, os de todo o mundo. “Será que estes contrastes assombrosos no estilo de vida e na fortuna geravam agitação social? Aparentemente, nem por isso, excepto entre os negros do Harlem com maior consciência política, porque estes bairros pobres fervilhavam também de esperança.” Tudo era possível na Manhattan de 45. E acima de tudo, o sucesso era possível. Era nisso que acreditavam as multidões que entravam e saiam de comboio, de ferry, de carro, e enchiam os escritórios de Midtown, olhando como alcançável a elegância dos que frequentavam os restaurantes, as lojas, os teatros, os hotéis. Os clubes de jazz multiplicavam-se, as galerias de arte, abriam museus, os jornais alcançavam tiragens inéditas; Manhattan era um “viveiro de escritores”. Arthur Miller, John Steinbeck, Bertolt Brecht, John Cheever, Tennessee Williams, W. H. Auden, e.e. cummings cruzavam-se nas mesmas ruas, nos mesmos bares. “Haveria quaisquer outros 5600 hectares no mundo capazes de se orgulhar de um elenco assim?”, interroga-se rectoricamente Morris.

É elegíaca, sim, mas apontando-lhe as fraquezas. O crime organizado, a corrupção, a droga, a pobreza, a ambição sem limites, a solidão, o álcool. Mas, acima de tudo, o símbolo que hoje reverbera com ecos mais profundos. Porque 1945 parece longe e não é tanto no tempo, mas mais uma vez no que simbolizava. “A Manhattan do pós-guerra pareceu-me sempre um símbolo tardio de uma América mais juvenil, ainda claramente inspirada pelos anseios dos seus Pais Fundadores — tolerância, confiança nas próprias capacidades, oportunidades e o direito constitucional a procurar a felicidade. Os seus cidadãos ainda veneravam deuses, como Cheever viria a dizer, ‘tão antigos como os vossos e os meus’, e parece-me que a maioria das pessoas, recordando a cidade-ilha naquela época, sem esquecer os seus defeitos e lacunas, declararia que, pesados todos os prós e contras, dentro daquilo que uma cidade tem para nos oferecer, se tratava de um lugar bom e alegre.”

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