Ainda não fomos anexados!

Quatro jovens tiveram a dignidade de clamar pela libertação do Tibete junto ao Palácio de Belém

O primeiro-ministro, António Costa, e o Presidente da República Popular da China, Xi Jinping, assinaram na terça-feira 17 acordos bilaterais de incidência económica e uma declaração conjunta de apoio ao secretário-geral da ONU, António Guterres. Neste documento, uma das causas em que ambos os governantes se comprometem é a da defesa dos direitos humanos, a doutrina estruturante e referência-guia das sociedades democráticas, fixada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que na segunda-feira fará 70 anos.

“As duas partes reafirmaram o seu empenho no multilateralismo, na defesa dos propósitos e princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, em apoiar o reforço do papel das Nações Unidas na comunidade internacional, na manutenção da paz e segurança internacionais, na promoção do desenvolvimento sustentável e na protecção dos direitos humanos”, diz o documento.

Ver o Presidente da China a assinar uma declaração sobre direitos humanos é um crédito a averbar pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva. Mas, ao que tudo indica, a disponibilidade por parte do poder na República Popular da China, dominado pelo Partido Comunista da China, para assinar este documento não terá passado de uma encenação. Na véspera, quando Xi Jinping saia do Palácio de Belém, onde foi recebido pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, aconteceu algo de inusitado pelo ataque que representa aos direitos humanos e também à soberania nacional portuguesa.

Como a Leonete Botelho reportava no PÚBLICO de terça-feira, “uma minimanifestação de activistas pelo Tibete livre foi abafada quando tentava levantar as bandeiras daquele território ocupado na Rua de Belém, durante a passagem da comitiva chinesa entre a Praça do Império e o Palácio de Belém. Houve encontrões e troca azeda de palavras e até a intervenção de um segurança da comitiva chinesa que mandou chamar a polícia portuguesa.”

Em causa estava uma manifestação de quatro activistas do Grupo de Apoio ao Tibete, munidos de uma bandeira nacional do Tibete e dois cartazes proclamando “Free Tibet”. Para quem não saiba, o Tibete foi ocupado pela China revolucionária em 1950. A anexação do Tibete, ao longo das últimas quase sete décadas, tem sido uma história de devastação humana, civilizacional e ambiental. A China fez do Tibete depósito nuclear. Vivem mais de cem mil refugiados tibetanos na Índia e mais de 50 mil no Nepal, para além dos milhares de mortos que a anexação tem feito, bem como as deslocações forçadas de tibetanos para a China e de chineses a colonizarem o Tibete. O budismo tibetano foi erradicado do país, a maioria dos templos destruídos e o próprio Dalai Lama, Tenzin Gyatso, auto-exilou-se do país, em 1959, formando na Índia o Governo no Exílio. Refira-se que o budismo, embora com escolas e desenvolvimentos específicos, era comum ao Tibete e à China antes da Revolução Chinesa de 1949. Mais: o budismo não é propriamente uma religião, já que não idolatra um Deus, mas uma filosofia de vida centrada na consciência humana.

Em defesa deste povo e desta civilização, cuja destruição pela China o mundo insiste em ignorar, quatro jovens tiveram a dignidade de clamar pela libertação do Tibete junto ao Palácio de Belém. O que aconteceu não é aceitável num país democrático. Um grupo de cidadãos chineses a viver em Lisboa, que davam as boas-vindas ao seu Presidente, tentou anular a manifestação pró-Tibete. Pior: a segurança oficial da comitiva do Presidente da China decidiu intervir para dispersar pessoas que se manifestavam a favor do Tibete numa rua de Lisboa. Não de Lhasa, nem de Pequim. E — cúmulo dos cúmulos — a polícia portuguesa só compareceu no local quando chamada pela segurança chinesa.

É um facto que a República Popular da China é um player mundial. É uma triste realidade que Portugal foi dilapidando o seu património de Estado em sectores estratégicos através de privatizações sem nexo, apenas para pagar despesas de tesouraria orçamental e evitar o descalabro da dívida e do défice. Provavelmente, é até uma sorte para Portugal que a EDP seja controlada pelo Estado chinês. O interesse da empresa estatal China Three Gorges parece ser a garantia que não acontece à EDP o que aconteceu à PT e à Cimpor. Mas era bom que Marcelo e Costa explicassem a Xi Jinping que nós ainda não fomos politicamente anexados pela China!

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