Primavera francesa?

Um regime sufragado há pouco mais de ano e meio treme com o quebrar das regras do jogo político-partidário que acontece nas ruas.

Nas ruas sucedem-se manifestações, a diversidade de protagonistas e motivações – preço dos combustíveis, impostos, segurança social, pequeno comércio, migrantes, etc. – encontra um ponto comum na insatisfação pelo regime em que vivem. Regime que responde com polícias e militares que disputam as ruas com as populações, granadas de gás lacrimogéneo, canhões de água e balas de borracha disparadas contra o exercício da cidadania que descamba nas ruas para o caos.

O regime político treme, mas não sustenho a respiração enquanto aguardo os aplausos unânimes da União Europeia, pela busca da democracia e a exteriorização da frustração justa e legitimamente sentida pelos cidadãos. Também não espero que prestigiadas distinções internacionais como o Nobel da Paz ou Prémio Sakharov de direitos humanos e democracia do Parlamento Europeu sejam entregues aos promotores desta primavera francesa.

Os protestos em França e na Bélgica trazem-me à memória imagens de uma primavera, intensamente saudada pelos europeus: a primavera árabe. A primavera árabe foi um must – o que se seguiu ou a violência que ainda grassa nalguns países foi paulatinamente saindo das notícias –, foram derrubados regimes e depostos Presidentes. Apoios surgiram, de diversas latitudes e organizações internacionais, à vontade cidadã de erradicar regimes totalitários. O Nobel da Paz e o Prémio Sakharov de direitos humanos e democracia do Parlamento Europeu foram entregues a promotores da primavera árabe.

A própria UE considerou que as pessoas nas ruas de Tunes, do Cairo, Benghazi e um pouco por todo o mundo árabe enviaram um sinal forte de liberdade e de democracia. Loas cantadas à paz, aos direitos humanos, à liberdade... críticas à violenta resposta dos regimes à contestação popular.

O caos nas ruas de Paris provocou uma resposta idêntica à dos tais regimes autocráticos, igualmente se registam agitações governamentais, cedências são feitas para apaziguar os ânimos mas o regime treme. Um regime sufragado há pouco mais de ano e meio treme com o quebrar das regras do jogo político-partidário que acontece nas ruas. 

Apesar das promessas e concessões evidentes, no que respeita à reivindicação inicial e aparentemente motivadora dos "Gilets Jaunes", o fim dos protestos permanece uma incógnita ou talvez não. Nos ares de Paris, nas redes sociais, nos tweets adivinha-se a vontade cidadã de confrontar os anunciados mais de 80 mil agentes das forças de segurança nas ruas.

Seja qual for o desfecho, não surgirão apoios ou declarações de simpatia de países ou organizações internacionais para os "Gilets Jaunes", nem condenações severas por parte desses mesmos países ou organizações dos métodos utilizados pela França em relação aos seus próprios cidadãos. Pelo contrário, desta vez, a desqualificação e minimização do ocorrido pelas autoridades francesas e o silêncio em respeito da soberania serão predominantes.

A mobilização do enorme descontentamento difuso e possibilidade de os protestos chegarem a outros países, tal como chegaram à Bélgica, é real e deixa certamente inquietos os países do sul da Europa, tão castigados com os apertões de cinto impostos pela UE – sintomática também a transformação de uma marcha pacífica na Grécia numa confrontação com a polícia.

O grito de revolta do cidadão é real. A participação política prometida pela democracia é cada vez mais uma ilusão e, à míngua da desejada democracia participativa, o caminho participativo das ruas oferece resultados mais rápidos – mesmo que transitórios e ilusórios – apesar da violência que se fará presente, seja por efeito dos agitadores, seja por efeito da resposta musculada das autoridades para reafirmação do regime.

Alguns regimes democráticos europeus permanecem autistas, a evolução cultural, social e económica das últimas décadas não encontra espaço quando de política se trata, ser ativo na cidadania e política através dos partidos e das eleições sufragando plataformas eleitorais pré-formatadas não responde à vontade cidadã de ser efetiva e verdadeiramente ouvida na definição das políticas e do que é prioritário para o seu dia-a-dia.

O voto resume-se frequentemente a uma opção entre o menos mau – Le Pen ou Macron, Haddad ou Bolsonaro –, verdadeira claustrofobia e asfixia democrática que mergulha os cidadãos dos nossos tempos ora no conformismo, revelado nos níveis de abstenção, ora no inconformismo que a luta nas ruas revela.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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