Ninguém sabe por onde anda a verdade no Teatro Aberto

João Lourenço estreia duas peças de Florian Zeller: A Verdade e a Mentira. Os mesmos quatro actores vão mentir com quantos dentes têm, não sendo nunca certo quando estarão a contar a verdade das suas personagens.

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A Verdade DR
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A Mentira DR
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A Mentira DR

Paulo está na cama com Patrícia. Os dois acabaram de explorar em detalhe o corpo um do outro e recuperam ainda o fôlego. Paulo veste-se com pressa, há uma reunião pós-almoço à sua espera; Patrícia queixa-se desta sua mania de a abandonar sempre antes de os lençóis terem sequer tempo de arrefecer. Basta o primeiro par de pistas para sabermos que estamos diante de um par de amantes, na sua rotina habitual de escapadela a meio do dia. Mas também não demoramos a perceber que Paulo é um dos melhores amigos de Miguel, marido de Patrícia. Miguel acaba de ser despedido. E Paulo está furioso com isso – “Já não há um mínimo de ética”, barafusta enquanto tenta descobrir o paradeiro da meia que encaixa no pé direito. Patrícia não está tão interessada em debater a situação laboral do marido. Quer antes discutir aquela relação, perceber como viver com a culpa que se instala no quarto de hotel antes que Paulo tenha tempo para bater em retirada. Já não aguenta, está farta de mentir.

A partir desta primeira entrada em cena da mentira, A Verdade, peça que o dramaturgo francês Florian Zeller escreveu em 2011, entrega-se a uma série de falsidades e fingimentos em modo matrioska, divididos por dois casais (três, na verdade, porque Paulo e Patrícia também são um casal; ou talvez quatro porque, enfim, as coisas são complicadas) a braços com a culpa e falta dela, em constante debate sobre a moralidade da mentira e os seus potenciais efeitos benéficos. A peça estreia-se esta sexta-feira na Sala Vermelha do Teatro Aberto, em Lisboa – a sala mais pequena, diga-se, devido à intimidade que o encenador João Lourenço quis reconhecer-lhe e sublinhar-lhe. Mas não estará sozinha. Porque lá em cima, na Sala Azul, e alternando os dias de apresentação (quartas, sextas e domingos para A Verdade, quintas, sábados e domingos para A Mentira), outros dois casais (três? quatro?) interpretados pelos mesmos actores (Joana Brandão, Paulo Pires, Patrícia André, Miguel Guilherme) protagonizam A Mentira, peça que Zeller escreveu em 2015.

Em ambas as peças, que nunca antes foram apresentadas lado a lado, Zeller faz deflagrar no centro da vida conjugal a relação delicada com a mentira e com a verdade – questionando se uma é forçosamente preferível à outra, se há um sofrimento mais importante do que outro, se o mal causado por uma confidência se justifica pelo alívio alcançado, se a verdade não será um conceito difuso e irrealista. A toda a hora, o dramaturgo tira o tapete ao público, confundindo as peças, destruindo a credibilidade de cada narrativa quando ela parece solidificar-se, como se, na verdade, alertasse a plateia para a excessiva credulidade com que vive os seus dias.

Mentira instalada

Já antes João Lourenço tinha levado os textos de Florian Zeller ao Teatro Aberto. Em 2016, dirigiu João Perry no papel principal de O Pai, peça que garantiu ao autor francês um enorme sucesso internacional. Foi aliás na altura em que preparava essa primeira abordagem à obra de Zeller que teve a curiosidade de ler A Verdade, por saber que fora escrita sob a influência de The Betrayal, de Harold Pinter. E foi de A Verdade que o encenador se lembrou, talvez por ter percebido que “embora a peça seja para a gente sorrir, o Zeller atira aqui e ali umas sementes de incomodidade”, nesta época de fake news e factos alternativos. “Já o Adão e a Eva deviam ter mentido lá com a parra e tudo o mais”, comenta ao PÚBLICO, “e desde então o que não se terá mentido até hoje. Mas agora a mentira está tão instalada – julgo que se sente muito mais.”

É por levar também à letra essa ideia de que “a mentira está tão instalada” que João Lourenço planta o cenário de A Mentira dentro de uma galeria de arte, como se fosse uma instalação que tem lugar num espaço rodeado por reproduções de quadros de várias épocas relativos à mentira. É uma das liberdades que toma com os textos de Zeller – outra passa por transportar A Verdade para os anos 1950, num ambiente que cita de forma explícita a série Mad Men (centrada na publicidade, um outro mundo de relação singular com a verdade); outra ainda passa por deixar que as personagens respondam pelos nomes próprios dos actores, enredando Joana, Patrícia, Paulo e Miguel em mais uma camada de falsidades.

Importante para João Lourenço é também que a mentira nas peças de Zeller ataque onde mais dói – no plano pessoal e íntimo. “Acho que as peças estão muito próximas da vida, porque não acredito que alguém não tenha passado já por qualquer coisa destas”, diz. E acrescenta, com um sorriso malandro, que pensa nos “casais que se irão enfiar no carro, no metropolitano, ou seguirão a pé à saída do teatro, fazendo o seu caminho muito calados”. Com medo, talvez, do que poderão dizer se abrirem a boca.

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