América, uma paródia virtual sobre o mundo real

Nathan Hill estreou-se com uma paródia da América contemporânea. Explorando a relação entre mundo virtual e real, Nix questiona a solidão e o papel da literatura na vida de quem tem de lidar com a noção de utilidade. Ou seja, a vida de todos nós. Será uma série de televisão com Meryl Streep.

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Nathan Hill foi professor de literatura numa universidade e teve alunos que lhe perguntaram acerca da utilidade da literatura. Nathan lá ia dizendo que a literatura era o melhor meio para se estar na cabeça de outras pessoas Nuno Ferreira Santos

Não há resposta simples para a inevitável pergunta do aluno: “Quando é que vamos precisar de saber isto na vida real?” E “isto” é Hamlet, a obra de William Shakespeare que Samuel Andresen-Anderson insiste em ensinar nas suas aulas. “Ensina literatura numa pequena universidade a noroeste de Chicago, num subúrbio onde todas as grandes vias rápidas se bifurcam e terminam em gigantescos centros comerciais e parques de empresas e estradas de três faixas entupidas de carros conduzidos pelos pais que mandam os filhos para a faculdade de Samuel.” Samuel foi criado por Nathan Hill, escritor americano de 39 anos, natural do Iwoa.

Como Samuel, foi professor de literatura no primeiro ano de uma universidade mais ou menos como esta e também teve alunos que lhe perguntaram acerca da utilidade da literatura. “A maior parte estudava finanças, gestão, contabilidade, engenharia, biologia e eu levava-lhes poesia. Uma vez um disse-me: ‘vou ser um contabilista, para que preciso de poesia?’ Percebi que a resposta que valia para mim não servia de argumento para os que questionavam a tal utilidade — palavra complicada nesta área — da literatura. Para mim chega-me talvez o facto de gostar de ler uma frase bem construída e achar isso esteticamente estimulante.”

Nathan Hill ia então dizendo que a literatura era o melhor meio para se estar na cabeça de outras pessoas. E, no quase desespero de quem pressente que só talvez a ciência convencesse acerca da utilidade da arte, socorreu-se de um artigo publicado em 2008 no New York Times. Tinha como punchline a ideia de que para ser bem sucedido numa entrevista de trabalho seria bom ler algum Tchékov. “O artigo dizia que ler boa literatura era trazer realidade virtual para o mundo real e aprender acerca das motivações de outras pessoas, como reagem a certas situações e como construir e trabalhar relações. Por último, que a literatura é um exercício para a mente.”

Não sabe se convenceu alguém, mas trouxe essa questão para um livro que satiriza o mundo actual de modo quase profético. Custa a acreditar, por exemplo, que o governador populista apedrejado no início do romance não seja uma caricatura de Donald Trump ou que a seguinte fala — de um velho guri dos media chamado Guy Periwinkle — tenha sido escrita antes do termo fake-news ter invadido os jornais e o debate político: “O que é verdadeiro? O que é falso? Caso não tenha reparado, o mundo já praticamente desistiu do velho conceito de Iluminismo de chegar à verdade a partir da observação dos factos.”

Mas o facto é que NIX, Fantasmas do Passado, romance de estreia, foi lançado no final de 2016, a data da eleição Donald Trump para presidente dos EUA, e não teria saído possível a Hill escrever em reacção o extenso volume que parece à medida do momento actual. “A política está cada vez mais polarizada, absurda, louca e muito provavelmente um candidato como este acabaria por aparecer; um candidato que desse corpo a todas essas coisas. E aí estava ele, logo em 2016. A minha intenção foi criar uma personagem que encarnasse algumas coisas desse absurdo que estava a surgir em política. E queria apenas ter piada e salientar o ridículo”, disse o escritor ao Ípsilon numa passagem por Lisboa a caminho festival literário Arquipélago das Letras, nos Açores, onde apresentou a edição portuguesa de um livro que valeu ao autor o elogio entusiástico de John Irving — “o melhor novo escritor de ficção na América. O melhor”.

Nix conta a história de Samuel Andresen-Anderson, professor de literatura frustrado e sem motivação que vive entre a presença irregular de uma ex-mulher instável e a ausência por ele deificada de uma mulher que amou e não esquece. “O que pensaria ela disto?”, é uma pergunta nele recorrente a propósito de eventos da sua existência corriqueira fora do mundo virtual. “Samuel pensa agora em Bethany da forma que outras pessoas pensam talvez em Deus. Do género: Como está Deus a julgar-me? Samuel tem o mesmo impulso, embora tenha substituído Deus opressa outra grande ausência: Bethany.” Samuel é viciado em vídeo-jogos, de modo a pôr num plano muito secundário a escrita de um romance que se arrasta há dez anos e, com isso, incorrendo num processo posto pela editora por incumprimento. Ele é protagonista de uma história de abandono: a mãe deixou a família era ele criança e agora sabe pelas notícias que foi ela quem agrediu o político republicano Sheldon Packer. Apresentada como uma radical de esquerda que esteve envolvida nos protestos de 1968, em Chicago, contra a guerra do Vietname, Faye volta à vida de Samuel como um mistério por resolver e será matéria para o livro que nunca ele nunca escreveu.

A solidão

Há pontos em comum entre Nathan e Samuel. Entre eles, falta acrescentar que Nathan também demorou dez anos a escrever Nix e algum historial de solidão. “Tenho sempre de esclarecer que estou muito grato à minha mãe por nunca ter abandonado a família”, diz, antes de contar que “Samuel resultou de querer uma personagem a quem falta um pedaço que ele persegue para dar sentido de direcção à sua vida. Mas a jornada emocional dele vem da minha experiência de crescimento. A minha família mudou muitas vezes de lugar quando eu era miúdo. Nasci no Iowa, mudei-me para Chicago, vivi em St Louis, Oklahoma, Kansas City. A cada dois anos era preciso recomeçar tudo. E ser o novo miúdo na escola pode ser muito difícil, muito brutal e solitário. A solidão que senti em criança dei-a a Samuel. Não sei o que é ser deixado por uma mãe, mas sei o que é sentir-me sozinho e posso escrever isso.”

Ao longo da conversa, tenta concentrar-se na relação entre mãe e filho e menos no momento político por achar — e desejar — que o livro sobreviva a Trump. “Quando o comecei a escrever, o livro era politicamente mais agressivo. A primeira ideia surgiu no verão de 2004. Tinha-me mudado para Nova Iorque, vivia numa pequena casa partilhada em Queens, trabalhava em Manhattan e estava a escrever outro livro, diferente, que começara na universidade, em Massachusetts. No meu primeiro mês em Nova Iorque aconteceu a Convenção Republicana em Madison Square Garden; era o segundo mandato da dupla Bush e Cheney, a guerra do Iraque estava a acontecer e muita gente chegou a Nova Iorque para protestar. Achei interessante ir a Manhattan assistir aos protestos.”

Foi. Esse era um mês de mudança também para ele. Na manhã do último dia de Agosto deixou o apartamento, pôs todas as coisas no carro e foi trabalhar. A nova casa estaria disponível nessa noite. “Quando saí do trabalho, o carro estava vazio. Foi terrível. Os meus livros, as minhas roupas, o meu computador e, no computador, o livro que estava a escrever...desapareceu tudo. Depois de toda a tristeza, decidi recomeçar a trabalhar e iniciar um livro novo. Pensava que seria um conto sobre a coisa mais interessante que tinha visto naqueles tempos: o protesto no Madison Square Garden e os comentadores dos noticiários a interrogarem-se se os protestos de Nova Iorque seriam tão violentos e caóticos quanto os de Chicago em 1968.”

A primeira ideia foi pôr em paralelo essas duas gerações de contestatários. Era apenas a primeira ideia. E depois foi um processo de aprendizagem desse período e também de escrever um romance.

No caso de Nathan Hill é um lento processo de manufactura. Escreve à mão porque lhe agrada e porque precisa dessa lentidão. “Não sei muito bem o que vou escrever quando me sento. Posso ter uma ideia ou uma direcção, mas não tenho um enredo; vou descobrindo as histórias ao longo do caminho, e gosto de me surpreender quando estou a escrever; gosto de pensar que se me surpreendo talvez o leitor também se surpreenda. Além disso, para estar aberto às possibilidades que vão surgindo tenho de ser lento. Quando estou a teclar sinto-me tentado a editar, e no primeiro esboço não quero editar muito. Sinto que com a mão estou mais ligado ao trabalho, por alguma razão abre-me mais possibilidades mentais. E depois, no computador é onde estamos ligados à Internet, recebemos emails, tem todas essas associações, é mais distractivo. O bloco de notas tem apenas uma função. Fico menos distraído quando escrevo dessa maneira.”

Quando acabou, o livro que seria um conto tinha mil e cem páginas escritas. Cortou, cortou e a edição portuguesa tem 732. “Houve secções que pareciam não pertencer ao resto, outras eram são becos sem saída. É uma maneira muito desarrumada e terrivelmente ineficiente de escrever.” Ri. “Sim, foi como se tivesse aprendido a escrever ao escrever este livro.”

A estrutura é simples, um livro de mistério em vários momentos da história da América recente: 1968, 1988, 2011. O leitor sabe da informação ao mesmo tempo que o protagonista. “Decidi que Samuel seria o meu detective e eu dava a informação ao leitor no momento em que Samuel a tinha.” Estamos na cabeça de Samuel, sobretudo, segue-se o fluxo de consciência, muitas vezes quase letárgico, outra em vertigem. Alguém que vive perigosamente entre a virtualidade do jogo e a realidade que desafia. Que muitas vezes não distingue uma da outra. Os diálogos são rápidos, monólogos vastos, parágrafos longos, de várias páginas; há registos próximos do ensaio ou da comédia de costumes; o experimentalismo — já muitos o disseram — parece ter uma proximidade com David Foster Wallace sem, contudo, atingir o mesmo desespero ou o grau de delírio. Nathan Hill já teve tempo para digerir esses cotejos. “E quando ainda dizem que é um livro Dickensiano?! Acho todas essas comparações muito simpáticas, todos são escritores extraordinários.”

Mas refere outros nomes como decisivos: Virginia Woolf, Donald Barthelme e John Irving, e tem justificações para gostar de cada um.

“Virgínia Woolf congrega mais do que ninguém aquilo de que falei antes, o sentido de estar na cabeça de outra pessoa, e, para mim, as primeiras 30 páginas de Mrs Dalloway são notáveis. A decisão de ir apanhar flores e caminhar por Broad Street, em Londres, enquanto está a ter uma conversa na sua própria cabeça; e vê uma coisa e ocorre-lhe uma memória... Woolf tinha o método de descrever a vida interior de modo tão real.” Confessa que tenta fazer isso. “Releio muitas vezes o início de Mrs Dalloway, pelo menos uma vez por ano.” Talvez seja uma tentativa de se deixar contaminar. Quanto a Bartheleme, o escritor americano que escreveu sobretudo contos, com um tom absurdo, quase surreal, descobriu-o na universidade numa altura em que estava a substituir engenharia por literatura.

“Eu tinha uns vinte anos e não estava preparado para certos textos. Mas tinha de ler alguns livros para as aulas e muitos pareciam-me aborrecidos, apesar de serem grandes trabalhos de literatura. Foi então que li Barthelme e é divertido e esperto, surpreendente e, por vezes, chocante. Foi um lugar luminoso numa jornada de leitura que senti como um pouco entediante. Ensinou-me que não faz mal tentar ter humor, tentar ser engraçado; que se pode fazer isso e, ao mesmo tempo, ser profundo, ser sério. Foi muito importante para mim. Antes dele eu tentava escrever histórias de profundas e deprimentes, muitos negras. Mas isso não sou eu”. Falta John Irving. “Fez parecer tudo possível. Viveu em Iowa City durante muito tempo, e vivi lá na altura e comecei a lê-lo. Tão boas tramas, fico agarrado àqueles livros. Escreve muitas vezes sobre jovens que querem ser romancistas e eu era um jovem que queria ser romancista e ele fez com que isso me parecesse possível. Para não falar de que tem grandes, grandes personagens.”

Samuel e Faye, personagens principais de Nix — título retirado da mitologia, associado ao espírito da água —, terão em breve corpo numa série de televisão. Meryl Streep será Faye, numa produção de J.J. Abrams para a Warner Bros. Não há ainda data de estreia. “Há muita gente importante ligada, por essa razão está a demorar. É difícil ajustar calendários. Mas não me estou a envolver muito”, adianta sobre a mais recente aventura de um livro em que arriscou tratar um tema ainda pouco explorado na literatura: o da virtualidade, ou melhor, a relação entre mundo virtual e mundo real. Maior é o risco quando lhe junta o humor. É eficaz. Ganharia, no entanto, se não se estendesse por tantas páginas.

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