Uma Hammerklavier magistral!

Gravação magistral, absolutamente magistral, como raras vezes se ouviu num disco de piano beethoveniano.

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Perahia abala-nos (não há outro termo) com “a sonata das sonatas”, a Hammerklavier

Murray Perahia é reconhecida e notoriamente um dos grandes pianistas da actualidade. É curial recordar o seu percurso. Como professor teve um grande mas injustamente tão pouco lembrado pianista, Mieczyslaw Horszowski, para mais, aspecto importante, um grande interprete de música de câmara, e teve também a oportunidade de frequentar o Festival de Marlboro e de aí trabalhar com interpretes da craveira de Rudolf Serkin (com o qual tocou duetos de piano), Alexander Schneider e Pablo Casals — e, sendo ele pianista é Casals que considera o seu “pai em música”. De resto, após ter alcançado a notoriedade, ganhando um dos mais importantes concursos internacionais de piano, o de Leeds, trabalhou com Benjamin Britten e Peter Pears no Festival de Aldeburgh, do qual inclusive viria a ser co-director artistístico.

Em termos discográficos a sua reputação ficou indelevelmente associada à integral dos Concertos para Piano de Mozart que fez com a English Chamber Orchestra na dupla qualidade de solista e maestro. Muito frutuosa, com belíssimas interpretações de obras de Mozart e Schubert, foi também a sua parceria com outro pianista, Radu Lupu.

De referir é ainda um facto singular: como bem sabemos, Georg Solti foi um dos maiores maestros da segunda metade do século; o que é bem menos conhecido é que também gravou um disco como pianista, ou antes como um dos pianistas. Acontece que fora o jovem Solti a virar as páginas da partitura a Béla Bartók na estreia da Sonata para Dois Pianos e Percussão. Com esse laço afectivo Solti quis gravar a obra e para parceiro escolheu…Murray Perahia.

Schumann, Chopin ou Brahms são referências no seu reportório, a que há a acrescentar a singularidade de também abordar Mendelssohn, bem mais do que é habitual em pianistas da sua notoriedade. E, apesar de ter trabalhado também com Horowitz e de ter sido muito próximo dele, é alheio ao reportório mais virtuosístico, de Liszt ou dos russos.

Se Mozart permanece o seu compositor de eleição, nas últimas décadas o mais frequente é Bach — mas confesso que o seu uso constante do pedal me faz considerar as suas interpretações bachianas como monótonas, para não dizer mesmo algumas vezes enfadonhas.

E Beethoven? Perahia tem-no abordado com parcimónia. A sua integral dos Concertos com Haitink não é particularmente distintiva, como não o é a interpretação das Variações Diabelli. E quanto às 32 Sonatas tinha gravado até agora, e se as minhas contas não erram, nem metade, 15. Mas eis que…

Eis que, aos 70 anos, e como se tivesse tido necessidade de toda uma longa maturação, Perahia nos abala (não há outro termo) e logo com “a sonata das sonatas”, a Hammerklavier. Pese ainda a justificada notoriedade das três últimas sonatas esta é a mais difícil e monumental. Dispondo de um novo instrumento dos seus construtores de eleição, os ingleses Broadwood (esse piano ainda está conservado de resto), Beethoven levou ao extremo a sua ambição de que o piano soasse como uma orquestra. Ciente das dificuldades da obra previu que daí a 50 anos os pianistas ainda teriam dificuldades em interpretá-la.

E o que logra Perahia? O ataque é colossal, e de imediato somos confrontados com um edifício monumental em que contudo o sentido do detalhe nunca é obliterado. A desmesura dos 1º, 3º e 4º andamentos é mantida sem quebras e de permeio o breve Scherzo. Assai Vivace pode durar apenas 2’28’’ mas é de facto de tal modo “Assai Vivace” que está longe de ser apenas um interlúdio. Mas, e logo depois, como, mas como, é possível manter sem quebra o sostenuto do tão longo Adagio? E como é possível lograr a terrivelmente difícil combinação da forma-sonata e das fugas no andamento final, para mais respeitando as terríveis indicações de metrónomo do Allegro risoluto? Só de ouvir fica-se ofegante!

Em vez de colocar em abertura do disco, qual prelúdio ao abalo da Hammerklavier, a bem mais praticada Ao Luar, Perahia segue o caminho inverso, como se depois do tumulto viesse a “rêverie”. E são de facto de uma etéria beleza os dois primeiros andamentos da sonata. Só que depois vem um Presto agitato que é de novo esmagador. Como, mas como, é possível a Perahia conseguir ser tão magistral ao nível dos maiores desafios?!

Esta gravação é magistral, absolutamente magistral, como raras vezes se ouviu num disco de piano beethoveniano.

Em Maio Perahia volta à Gulbenkian, com “programa a anunciar”. O que nos estará reservado?

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