O esplendor da biografia

Javier Marías conduz ao fulgor máximo a biografia literária. Literária não só porque se trata da vida de escritores, mas por estas biografias serem uma forma superior de literatura em si mesmas.

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Estes ensaios nunca são labor exclusivista da biografia, do ensaio, da narrativa — são a superação das fronteiras EDUARDO PARRA/GETTY IMAGES

Se Javier Marías vivesse na tradição cultural portuguesa, poderíamos considerá-lo um “estrangeirado”. Perante o espanhol autor de Amanhã na Batalha Pensa em Mim, aquele termo específico da tradição nacional designaria uma figura cultural assinalada por marcas alheias à sua origem, na biografia e no percurso escrito. No caso de Marías, ambas se aplicam a quem foi professor em Oxford e não poucas vezes tem sido taxado de pouco espanhol. Na sua introdução a Vidas Escritas, o próprio o refere, de passagem, mas não sem golpe de ironia — “são já tão numerosas e variadas as ocasiões em que me foi negada a espanholidade por parte de alguns críticos e colegas indígenas (tanto no que se refere à língua como à literatura e quase à cidadania” (p.14).

Se pensarmos na tipologia e nos aspectos de pormenor de Vidas Escritas, Javier Marías — que é, à evidência, um cultor exímio do seu idioma e um conhecedor denodado da matriz espanhola — segue neste conjunto de biografias, não tanto um impulso de anglofilia electiva, mas escuta um apelo de construção. Note-se, por exemplo, que a escolha dos escritores biografados — uma vez mas, é o próprio quem o diz — “foi arbitrária” (p.13). Marías lista mesmo as nacionalidades deste conjunto para demonstrar o que é, no fundo, um inevitável ecumenismo de geografias culturais — “três norte-americanos, dois escoceses, dois russos, dois franceses, um polaco, uma dinamarquesa, um italiano, um alemão, um checo, um japonês, um inglês da Índia e um inglês de Inglaterra” (p.14). É talvez na sua interpretação do que é um ensaio e uma biografia que Javier Marías mais demonstra as suas afinidades anglo-saxónicas. Ensaio, narrativa e mesmo biografia — e autobiografia — implicam-se entre si nessa linhagem que inclui um Oliver Goldsmith, Thomas de Quincey, ou William Hazlitt, expoente do ensaio naquele como noutros tempos. Mas talvez o Henry James ensaísta não ande longe dos conseguimentos do espanhol — James é, de resto, uma das mais persistentes referências ao longo de Vidas Escritas, e talvez não fosse descabido aproximar a prosa dos dois escritores. Marías leva, naturalmente, a outras paragens aquela contaminação da biografia pela reflexão e destas pelas técnicas ficcionais. Em resultado dessa convivência de modalidades literárias, as biografias acolhidas neste Vidas Escritas são sempre relatos de corte preciso, que gerem a administração dos factos enquanto abertura permanente para a fruição. Ao historiar a vida deste conjunto de autores, Marías reflecte sempre sobre as obras por eles produzidas, bem como os processos de escrita que lhes são característicos. Por esse motivo, estes ensaios nunca são um labor exclusivista da biografia, do ensaio, nem da narrativa — mas uma superação da possibilidade de haver fronteiras entre cada uma daquelas vias.

Insigne cultor da escrita ficcional, conhecedor profundo dos seus mecanismos, como prático e teórico, Marías quebra os pactos dos géneros com amplo donaire. Escrevendo, por exemplo, sobre Nabokov, eis que o narrador se deixa explicitar, saltando borda fora da cabine onde se ocultava na minúcia da sua navegação — “O maior prazer, o maior destino, os maiores êxtases, experimentou-os eles a sós, caçando borboletas, resolvendo problemas de xadrez, traduzindo Pushkin, escrevendo os seus livros. Morreu a 2 de Julho de 1977 em Montreux, com 78 anos, e eu soube dessa morte na calle Sierpes, ao abrir um jornal enquanto tomava o pequeno-almoço no Laredo.” (p.106) Mas Javier Marías ainda acrescentará cambiantes a este diaporama dos géneros escritos. É o caso de uma recensão às cartas trocadas entre Turgénev e Flaubert, que lhe fornece generoso pretexto para um suplemento às suas biografias. Marías efectiva as texturas, os movimentos, a gesta dos sentidos, acirra os contrastes — “Enquanto Flaubert permanecia encerrado em Croisset, perto da sua Rouen, e quando muito chegava a Paris para se impacientar uns dias com os seus contemporâneos ou deslocava-se aos Alpes umas semanas para os achar ‘desproporcionados em relação ao indivíduo que somos’ e ‘demasiado grandes para que nos sejam úteis’, Turgeniev movia-se pelo continente como um esquilo e tanto escrevia ao seu amigo de Paris como de Moscovo, Baden-Baden, Berlim, Escócia, Oxford ou São Petersburgo. A alguns desses sítios ia por obrigação, para cuidar das finanças ou receber um doutoramento honoris causa, mas outras vezes o motivo da viagem era próprio de um cavalheiro ocioso: perseguir perdizes ou tetrazes-grandes em caçadas organizadas por aristocratas com o dedo inquieto e tendência para o acalmarem com o gatilho. Pelo contrário, Flaubert parecia dedicar todo o seu tempo livre a devorar estúpidos volumes que o ‘embruteciam’, com o único objectivo de documentar devidamente os seus romances e contos.” (p.274) Desculpe-se a extensa citação, porque ela serve o propósito de ilustrar a técnica e o alcance estilístico de um autor em cuja escrita, de acordo com o prólogo de Elide Pittarello, “todo o sabor romanesco é deliberado” (p.10).

Ao contrário do que se poderia supor, Vidas Escritas não pretende chegar à condição de compêndio de escrita, dando mais voltas do que as necessárias. Porque não é um cânone o que se visa sugerir. São bem fiéis à verdade dos seus factos, as palavras de Marías quando se supõe “longe da hagiografia” (p.14), ou descreve a “mescla de afecto ironia” (id.) que tempera estes seus textos — e é revigorante e digno de apreço que o escritor afirme a veia irónica de todas as suas biografias, não deixando de reconhecer a falta de afeição em casos muito concretos, como os de “Joyce, Mann e Mishima” (id.). Entendamo-nos: Marías, não recusando a análise imparcial dos factos e dos feitos de escrita, é glacial em relação a James Joyce: “Quando Finnegans Wake apareceu muito depois e teve um acolhimento frio, sentiu-se ferido e descontente, e assim passou os últimos anos de vida, o que não é uma maneira agradável de os passar, sobretudo se são os últimos.” (p.46) Thomas Mann, por seu solene turno, é autenticamente abalroado por um Marías em modo irónico — “Qualquer escritor que deixa envelopes fechados que não devem ser abertos até muito depois da sua morte está convencido da sua tremenda importância, e isso costuma ser corroborado na abertura dos ditosos e decepcionantes envelopes ao fim de uma paciente espera. ” (p.93) Rilke não recebe tratamento menos implacável. E embora Javier Marías pareça sentir mais empatia pelo poeta do que pelo romancista, não oculta pecadilhos: “Para falar verdade, e pelo menos nas suas primícias, era bastante dado à liseonja, e não se limitava a mostrar um interesse desmedido pela obra de outros ou a louvá-la, mas pelo menos em duas ocasiões ofereceu-se para escrever longos volumes sobre essas louvadas obras” (p.109).

As relações mais empáticas, porém, tem-nas Marías com autores como Henry James e Laurence Sterne — de quem traduziu o genialmente endiabrado Tristram Shandy. O texto dedicado a James começa de forma especialmente fraternal e atenciosa. Somos quase tentados a perceber uma camaradagem nada anacrónica naquelas palavras de abertura — “Pode dizer-se de Henry James que foi infeliz e feliz pelo mesmo motivo, a saber: era um espectador da vida, quase não participava nela, ou pelo menos não o fazia nos seus aspectos mais atraentes e emocionantes.” (p.61) Sterne é um dos autores que surgem na secção central de Vidas Escritas e na sua zona suplementar, Artistas Perfeitos, onde Marías comenta fotografias de autores que estão, mas sobretudo que não estão nas biografias aqui reunidas. Acerca do retrato de Sterne diz que “pertence a um hlhasomem consciente do seu talento, mas que não tem nada de presumido” (p.263).

Esta edição inclui uma rubrica que fez parte de Literatura e Fantasma, mas que Javier Marías incorporou numa reedição de Vidas Escritas: Mulheres Fugitivas. Do conjunto destes poderosos retratos femininos, destaca-se aquele que o escritor dedica a Emily Brontë. Um dos vários casos em que Javier Marías faz da biografia um momento de exemplar concisão. Uma brevidade que não inibe, nem o pormenor, nem a liberdade dos relatos — “O senhor Bontë — que exotizou o seu original Brunty durante a sua passagem, como não podia deixar de ser, por Oxford (talvez porque bronte significa ‘trovão’ em grego) — tinha fama de excêntrico e de austero, e, apesar de as informações existentes terem origem em fontes não muito fidedignas (porque ressentidas), afirmava-se que no seu zelo se recusava a dar carne às filhas e as condenava a um regime de batatas” (p.214).

Vidas Escritas é um momento cimeiro da biografia praticada com informação e consumada brevidade. Modelo de escrita e erudição, a recolha de Javier Marías é o trabalho de um escritor que sente entre os seus, mesmo quando anota, sempre com elegância, as suas falhas de personalidade ou os ridículos da sua senda.

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