Bullyings, hiperatividades & afins!

O bullying não é para combater, nem os falsos diagnósticos de hiperatividade para medicar. Estamos antes a falar de situações que têm de ser seriamente prevenidas

No passado dia 20 de outubro celebrou-se o Dia Mundial do Combate ao Bullying. Combate? Estaremos implicitamente a veicular a lógica de um problema inevitável, que depois se combate?… Fiquei a pensar nisso. Pelos mesmos dias reli um artigo que recuperava a questão da hiperatividade, sinalizando que num período de 11 meses do ano passado se venderam em Portugal 254 mil embalagens de medicamentos para a hiperatividade. O que é que este número nos diz?... Fiquei a pensar nisso.

O que terão estas duas situações em comum? Parece-me que as nossas crianças e jovens nos estão a dar muitos sinais, aos quais não estaremos devidamente atentos… Se estivermos perante reais situações de bullying, estamos a falar de crianças e jovens que intencionalmente provocam sofrimento no colega, recorrendo a abuso físico ou psicológico de forma continuada. Mas porque a situação se perpetua, estamos também a falar de crianças e jovens com dificuldade em lidar com as ameaças, de comunicar eficazmente e denunciar.

Excluamos agora as crianças e jovens que reúnem os critérios para um efetivo diagnóstico de Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA). Claro que a situação da PHDA é complexa e controversa, e as perspetivas podem variar, conforme esteja a ser equacionada uma visão médica, psicológica, farmacológica ou pedagógica. E cada qual “puxa a brasa à sua sardinha”. Eu puxo a brasa à minha, enquanto psicóloga: existem muitos falsos diagnósticos, e em muitas situações confundir-se-ão questões clínicas com questões desenvolvimentais. Na verdade, temos muitas crianças e jovens que manifestam intensas dificuldades em autorregular o comportamento, em controlar o impulso, ou focar a atenção, e que, no entanto, não se encontram numa situação clínica de PHDA. Diria que são a maioria. São crianças que conseguem autorregular-se quando a tarefa a realizar é gratificante e do seu interesse, mas nas situações que exigem capacidade de lidar com a frustração ou implementar esforço, manifestam uma grande dificuldade.

O que se passa afinal?! O que têm em comum agressores, vítimas de bullying e crianças que não tendo PHDA manifestam comportamentos hiperativos?!

  1. O bullying, os comportamentos hiperativos ou outros fenómenos que parecem estar a aumentar na infância e adolescência (como a indisciplina, ansiedade ou a depressão) constituem-se como um alarme a tocar que insistimos em não ouvir. O alarme que nos diz que as nossas crianças e jovens parecem ter um desenvolvimento socioemocional cada vez mais imaturo, e incompatível com as exigências do seu dia-a-dia. 
  2. Estamos, portanto, a falar de muitas competências diferentes necessárias para compreender e gerir emoções, definir e atingir objetivos, sentir e mostrar empatia pelos outros, estabelecer e manter relações sociais positivas e tomar decisões responsáveis. O modelo CASEL (Collaborative for Academic, Social and Emotional Learning) organiza esta diversidade de competências. Para quem quiser, pode ver mais aqui.
  3. É fundamental ter uma abordagem dinâmica e compreensiva do desenvolvimento das crianças e dos jovens. Temos assistido a muitas mudanças sociais, nomeadamente demográficas (p. ex. mudanças na estrutura das famílias) ou tecnológicas (p. ex. forma de ocupar os tempos livres) que têm impacto no desenvolvimento. As competências desenvolvidas a jogar na Playstation são diferentes das competências desenvolvidas a jogar pião na rua. Evitem-se discursos moralistas e regressivos. Não estamos a falar de ser melhor ou pior. Estamos a falar de mudanças que naturalmente têm impacto no desenvolvimento e que não podemos desconsiderar.
  4. Não podemos desconsiderá-las porque o desenvolvimento socioemocional é como um músculo. Treina-se. Desenvolve-se. Aprende-se a ser socioemocionalmente competente. E se o quotidiano não cria naturalmente tantas oportunidades de desenvolvimento, estas terão de ser intencionalizadas.
  5. Apesar de a OCDE enfatizar o “poder” do desenvolvimento de competências socioemocionais e de o Ministério da Educação e da Ciência valorizar este tipo de competências integrando-as implicitamente no Perfil de Saída dos Alunos à saída da Escolaridade Obrigatória (Despacho n.º 6478/2017, 26 de julho), a verdade é que Portugal não tem ainda uma política educativa sistemática e producente a este nível. Ficamos então dependentes da qualidade das práticas parentais, de serviços de psicologia em contexto escolar reforçados, e de professores de excelência (e há muitos), que intencionalizam o desenvolvimento destas competências na prática pedagógica quotidiana.
  6. E ainda bem que o fazem, porque o desenvolvimento socioemocional é o sistema imunitário psicológico das crianças e dos jovens. Há muita evidência científica disso mesmo. Uma metanálise de Durlak e colaboradores, já de 2011, comprova que a estimulação das competências socioemocionais promove: 1) Aumento da realização académica (p. ex., melhores notas escolares); 2) Melhoria do ajustamento atitudinal e comportamental (p. ex., capacidade de se automotivar); 3) Diminuição de problemas de comportamento (p. ex., agressividade); e 4) Diminuição de mal-estar psicológico (p. ex., ansiedade e depressão). Não é isto que queremos para nossas crianças e jovens?

Por isso, o bullying não é para combater, nem os falsos diagnósticos de hiperatividade para medicar. Estamos antes a falar de situações que têm de ser seriamente prevenidas, através da estimulação intencional de competências socioemocionais, que permitirão, por exemplo, que as crianças lidem com a frustração de forma mais adaptativa, autorregulem o seu comportamento, empatizem umas com as outras, comuniquem assertivamente…. Vamos, por favor, estar todos (Pais, Professores, Políticos, Educadores em geral…) mais atentos a isto, e intencionalizar o reforço do sistema imunitário psicológico das nossas crianças e jovens? Sim, é difícil. Mas valerá muito a pena.

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