Tourada fiscal

Não só existem já incentivos de mais à tauromaquia, como o OE 2019 vem juntar novos incentivos a uma atividade que implica violência e sofrimento animal injustificados.

A discussão sobre as touradas voltou à ordem do dia, desta vez pela via fiscal. O Orçamento do Estado (OE) para 2019 prevê alterações no IVA aplicável à tauromaquia: 1) o fim da isenção de IVA dos serviços prestados por artistas tauromáquicos, ficando sujeitos a IVA a 6%; e 2) embora a proposta do Governo previsse manter o IVA nos espetáculos tauromáquicos nos 13%, propostas de alteração já aprovadas com os votos do PSD, PCP, CDS e de alguns deputados do PS reduziram esta taxa para os 6%.

O fim da isenção, medida do PAN, visa penalizar a tauromaquia. No entanto, em muitos casos poderá beneficiá-la. De facto, apesar dos serviços prestados por artistas tauromáquicos encarecerem, ao serem acrescidos de IVA, estes passam a poder deduzir o IVA que pagaram nos bens e serviços adquiridos para a sua atividade. O que isto na prática significa é que não só passam a ficar melhor financeiramente, como podem mesmo ficar em crédito fiscal perante o Estado, através do reembolso do IVA que suportaram. É, pois, uma medida que à primeira vista parece desincentivar a tauromaquia, mas que, na prática, lhe é até financeiramente útil, o contrário do pretendido.

Já a redução para 6% do IVA (proposta pelo PSD, PCP, CDS e PS) incentivará as touradas ao vivo.

A taxa reduzida de 6% é destinada a atenuar o impacto na aquisição de bens ou serviços, incentivando-os, daí se aplicar a produtos alimentares, medicamentos, próteses e livros, entre outros, e deve respeitar um dos princípios dos benefícios fiscais: ter caráter excecional para assegurar um interesse público extrafiscal relevante, superior ao imposto que é sacrificado. Deve também considerar o sistema fiscal como um todo. Como se justifica que o papel higiénico, bem de primeira necessidade, tenha 23% de IVA, enquanto as touradas beneficiam da taxa de 6%?

Chegamos então à questão principal: têm as touradas um interesse extrafiscal relevante? Não sendo unânime, considero que não têm, por várias razões. Diria até que o interesse é o de as desincentivar.

É inegável que as touradas implicam sofrimento animal. Uns dirão que é aceitável em função da alegada arte. Outros, como eu, dirão que é inaceitável. Certo é que é função do Estado ir eliminando e prevenindo o sofrimento animal. Nesse sentido, recentemente os animais deixaram de ser “coisas” para a lei, eliminou-se o direito a causar-lhes sofrimento injustificado e criminalizou-se os maus tratos a animais de companhia. Ora, os incentivos à tourada não se coadunam com este movimento. O respeito pelos animais é um dos valores que mais e melhor desenvolvimento tem tido, e que claramente se sobrepõe ao valor do espetáculo tauromáquico. Como bem disse o embaixador Seixas da Costa no Facebook, "Eu também não coloco os animais acima das pessoas, mas coloco o sofrimento dos animais acima do gozo de um espetáculo para pessoas".

A esta argumentação é normalmente contraposto o valor da tradição. É estratégia já antiga usar a tradição contra certos movimentos, principalmente os de direitos humanos. É um argumento por definição errado, dado tentar justificar a continuidade de uma prática negativa com base em ser algo que “sempre se fez”, e que foi sempre e repetidamente utilizado para tentar impedir o fim de práticas que hoje são inaceitáveis, como a escravatura, a proibição do voto das mulheres e a discriminação em função do género e da orientação sexual. As tradições podem ter valores históricos e culturais, mas não podem servir como perpetuadoras de discriminação, sofrimento e violência, como é o caso das touradas.

Por fim, refira-se que as touradas já têm bastantes incentivos. A transmissão de touradas pela RTP é um incentivo estatal, e a tauromaquia recebe ainda diversos incentivos pela via de subsídios agrícolas que beneficiam a criação dos chamados touros de lide, a que se juntam os incentivos autárquicos à realização de touradas.

Em suma: não só existem já incentivos de mais à tauromaquia, como o OE 2019 vem juntar novos incentivos a uma atividade que implica violência e sofrimento animal injustificados. Não é tradição que mereça proteção. Espera-se que, num futuro muito próximo, esta discussão se tenha tornado inútil, por os direitos dos seres vivos serem mais claros para todos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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