Investimentos e créditos de risco causam perdas de 600 milhões no Montepio

Gestão de Tomás Correia no Montepio violou, em 2014, já depois da crise do subprime, os limites de investimentos especulativos apostando em derivados da PT. E concedeu créditos a clientes de risco. Perdas para o banco chegaram perto dos 600 milhões.

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Miguel Manso

Há cerca de quatro anos e meio, a 24 de Abril de 2014, a Caixa Económica Montepio Geral (CEMG) tinha investimentos especulativos e empréstimos de risco de cerca de 850 milhões de euros a apenas nove clientes, o que levou o departamento de planeamento da instituição a chamar via email a atenção da administração, ainda chefiada por Tomás Correia. Em causa estavam clientes como Rui Alegre, que, de acordo com o email, tinha “barcos” que eram um "cancro” (135 milhões), os grupos Espírito Santo (120 milhões), a imobiliária HN (74,5 milhões), os construtores da Figueira da Foz Aprígio Santos (74 milhões) e da zona da Amadora José Guilherme e Jorge Silvério (120 milhões), mas também a EDP (150 milhões), a PT (114,2 milhões) e a Galp (80 milhões de euros). Do bolo salvaram-se os investimentos na EDP, na Galp e no GES. Quanto aos restantes, o Montepio registou, logo em Abril de 2014, perdas totais de cerca de 380 milhões de euros que, nos anos seguintes, evoluíram mais 200 milhões, para quase 600 milhões de euros.

Mas é em torno das aplicações do Montepio em derivados de crédito, os designados CLN e as securitizações que, em Abril de 2014, ascendem a 128 milhões de euros, que as preocupações dos técnicos do departamento de planeamento, na altura chefiado por João Neves, mais se concentraram. Em particular referem-se a um investimento de 75 milhões de euros em Credit Linked Note (CLNs, derivados de crédito no qual o risco é oculto) da PT.

No email enviado a Tomás Correia, os técnicos admitem que “em caso de desvalorização continuada de 30%” destes “instrumentos altamente complexos”, os mesmos que desencadearam a crise do subprime de 2007 e de 2008, haveria perdas para o banco. Em 2014, tal como agora, a CEMG era o principal activo do grupo Montepio, a maior entidade da economia social.

A aplicação dos 75 milhões de euros da CEMG em CLN da PT (Oi) fora antecedida de um investimento de 39 milhões de euros em dívida sénior (não garantida) do mesmo grupo de telecomunicações, decisão que não suscitou dúvidas. O departamento de mercado de capitais subscrevera 28 milhões de euros de uma emissão obrigacionista a terminar a 8 de Maio de 2020 e mais onze milhões de uma outra emissão a concluir 16 de Junho de 2025. Até aqui tudo normal.

Os acontecimentos posteriores provam, porém, que os receios do departamento de planeamento em relação à exposição à PT tinham razão de ser. E revelaram-se até ainda mais problemáticos. Por “acreditar na qualidade creditícia do emitente”, o Montepio vai apostar em títulos derivados da PT. E solicita ao banco norte-americano Morgan Stanley que invista 25 milhões e ao Crédit Agricole 50 milhões na aquisição de obrigações da operadora de telecomunicações. O objectivo era que estes dois bancos as estruturassemsob a forma da Credit Linked Note (CLN). Ou seja, embalassem os títulos em camadas que escondem o risco.

E a 31 de Março de 2014, sem que a deliberação fosse submetida a uma análise de risco, o Montepio Geral viria a assumir os dois veículos criados especialmente para o efeito pela Morgan Stanley e pelo Crédit Agricole que, note-se, era accionista de referência do GES/BES que, por seu turno tinha 10% da PT. A exposição do grupo mutualista ao risco PT subiu então dos 39 milhões aplicados em dívida sénior para 114 milhões de euros.

Melhorar as contas com mais risco

O propósito do investimento especulativo de 75 milhões foi sustentado pela necessidade de “melhorar a margem financeira” da Caixa Económica, através do aumento dos proveitos, e de fazer face a “um cenário de esmagamento de taxas e normalização dos spreads de crédito dos emitentes, e conservar yield [margem de lucro]”. Foi assim que os 75 milhões de euros de obrigações estruturadas da PT se somaram aos 53 milhões de euros aplicados em operações especulativas que já existiam na carteira do Montepio, perfazendo 128 milhões de euros.

O tema que vai preocupar um núcleo restrito de analistas do Montepio é este: com a compra de derivados de crédito da PT, o Montepio ultrapassava em 58 milhões de euros “o limite estabelecido para poder investir em obrigações estruturadas”, as referidas CNL’s. Em resumo: as regras do banco determinavam que as aplicações em derivados de crédito adicionais aos 70 milhões de euros pré-fixados não eram racionais.

Então, para regularizar a situação, foram dados passos a posteriori. A 10 de Abril de 2014, a Direcção Financeira e Internacional (departamento de mercado de capitais) ensaia uma solução e comunica-a a Tomás Correia: “De forma a acomodar a exposição já assumida e, adicionalmente fazer face a novos investimentos, propõe-se o aumento do limite actual de 70 milhões para 200 milhões de euros.”

A 17 de Abril, a proposta é submetida à votação do conselho de administração e Tomás Correia despacha-a favoravelmente: “Aprovado o aumento do limite de exposição para o instrumento 'Obrigações estruturadas' de 70 milhões para 200 milhões.”

Há um detalhe a ter em conta. Quando, a 31 de Março de 2014, o Montepio investiu os 75 milhões de euros em CLN da PT, já o grupo de telecomunicações estava em situação de grande aperto. O que era conhecido, pois os 3,6 mil milhões de euros que em 2010 aplicara na operadora brasileira Oi, agora só valiam 350 milhões de euros.

Em poucos dias a PT vai ficar com mais problemas, uma vez que comprou 890 milhões de euros de obrigações da Rioforte, a “holding” não financeira do GES, cujo valor patrimonial já era negativo em 945 milhões de euros. E está prestes a entrar em agonia. Os 5,9 mil milhões de euros, a soma do que investiu em 2010 e em Maio de 2014 não Oi, só valiam dois mil milhões. Em Julho a PT, o GES e o BES colapsam. Os efeitos são os esperados: os credores deixam de ter condições para recuperar o que investiram. Só o Montepio tem a haver 114,2 milhões de euros de CLN e obrigações séniores.

Finalmente, o grupo Montepio reconhece uma perda da sua exposição à PT de 91,2 milhões de euros: 80% do que investiu. E na assunção da perda está a explicação para os prejuízos semestrais de 60 milhões de euros apurados em Junho de 2016.

No Verão de 2016, depois do pedido de recuperação da Oi (já integrando a PT), a CEMG contactou a Morgan Stanley e o Crédit Agrícole para solicitar a entrega das obrigações estruturadas, de modo a poder aceder como obrigacionista ao plano de reestruturação da operadora brasileira. A Morgan Stanley e o Crédit Agrícole contrapõem com a liquidação financeira dos CLN ao valor de mercado: 15 milhões. O Montepio recusa. Pois o objectivo é ganhar peso no sindicato bancário que vai reestruturar a divida da PT/Oi, uma opção que se revela proveitosa, pois acaba a recuperar 35 milhões de euros, mais do que os 15 milhões. 

Operações fora do alcance do Banco de Portugal

Esta foi uma das operações controversas que escapou ao crivo da auditoria forense ao Montepio encomendada em Junho de 2014 pelo BdP à Deloitte. O trabalho da consultora centrou-se na análise dos grandes contratos de crédito concedidos, entre 2009 e 2014, pelo banco ainda chefiado por Tomás Correia, e nas práticas de gestão. Foi escolhida uma amostra extrapolável e representativa que, por não incidir sobre as carteiras de títulos, acabou por deixar de fora do âmbito da auditoria a compra de dívida de risco, nomeadamente da PT. Embora se trate de um financiamento, não é um crédito puro.

Do mesmo modo, a auditoria forense não apanhou o conjunto dos empréstimos concedidos pela CEMG, entre 2009 e 2014, a título pessoal, ao cliente José Guilherme, construtor civil da zona da grande Lisboa e Amadora e de Angola. Trata-se do construtor que “ofereceu” 8,5 milhões de euros (mais 5,5 milhões) a Ricardo Salgado, por alegados serviços que o banqueiro alega ter prestado em 2009 (e que o Ministério Público suspeita ser o resultado da partilha de negócios que os dois tinham em Angola). 

Entre Março e Abril de 2009, tal como avançou o PÚBLICO a 4 de Novembro deste ano, José Guilherme foi levantar 8,5 milhões de euros junto do Montepio, financiando-se, pela primeira vez, a título pessoal na instituição. Em 2012, a sua dívida particular ao banco evoluíra para 12,194 milhões de euros. A última tranche dos empréstimos do Montepio, de 17 milhões de euros foi-lhe atribuída em Junho de 2014. As responsabilidades de Guilherme tinham então evoluído para 28,4 milhões. E sem ter havido liquidação.

O PÚBLICO teve acesso a relatórios do departamento de risco a recomendarem que os créditos fossem “rejeitados” e outros a informarem que os créditos a Guilherme não foram objecto de análise crédito. O Montepio acabou a contabilizar como perda potencial os 28,4 milhões de euros dados directamente a este construtor. 

Construção e imobiliário

Ao contrário dos créditos pessoais que não constam da auditoria forense do BdP, o negócio da Invesfundo II, um projecto imobiliário em Alfragide para a construção do Marconi Park, foi registado pela Deloitte e acabou reportado ao Ministério Público que o investiga. Criado em Dezembro de 2005 pela gestora do GES, a Gesfundo, o Invesfundo II era detido por cinco investidores, sendo os maiores Jorge Silvério, com 50%, e José Guilherme com 24%. A 18 de Setembro de 2006, contratara junto do Montepio e do BES dois empréstimos de 25 milhões de euros cada (50 milhões).

O MP admite que Jorge Silvério e José Guilherme podem ter pago 3,5 milhões de euros a Ricardo Salgado e a Tomás Correia, o que estes negam. Entre Junho de 2006 e Janeiro de 2007, Silvério e Guilherme terão destinado 1,5 milhões a uma conta numérica, na Suíça, na Union des Banques Suisses, cuja titularidade o Ministério Público atribui a Tomás Correia. Para a offshore Savoice, criada por Ricardo Salgado no Panamá, Guilherme e Silvério terão feito chegar, entre Maio de 2006 e Março de 2007, dois milhões de euros.

A 13 de Outubro de 2009, o Invesfundo II surge sinalizado nas contas do Montepio como devedor problemático, acumulando prejuízos. Ainda assim, no ano seguinte, recebeu mais 24 milhões de euros, dos quais 12 milhões saíram da CEMG, apesar do parecer negativo da análise de crédito emitido a 2 de Julho de 2010. A obra de Alfragide, “fiscalizada pela Silverurb, administrada pelo cônjuge e filho do Engº Silvério”, está parada e Silvério (financiado em 2011 em 16 milhões a título pessoal pelo Montepio) e Guilherme não têm condições de pagar. O Montepio e o Novo Banco ainda não recuperaram os 74 milhões que meteram no Invesfundo II.

A amostra da auditoria forense do BdP detectou também uma relação comercial de contornos irregulares com mais dois grupos de construção, um da Figueira da Foz, Aprígio Santos, o outro do Porto, HN. Ambos com uma relação comercial antiga com o Montepio e a enfrentar problemas, que provocaram rombos nas contas do banco de 148 milhões. Logo em 2009 houve alertas de que os dois clientes tinham assumido elevadas responsabilidades com o sector bancário e não tinham condições para pagar o que pediam emprestado ao Montepio. As recomendações de rejeição dos serviços internos não foram seguidas.

Outro caso bicudo, e que segue a mesmo padrão, é o do empresário Rui Alegre, que comprou a um investidor grego a Portuscale, um negócio de navegação, com quatro embarcações: Lisboa, Porto, Azores e Paquete Funchal, o último navio da frota comercial portuguesa construído no começo dos anos 60.

Em 2010, as dívidas da companhia de cruzeiros ao Montepio (que remontavam aos anos noventa) cifravam-se em 28,9 milhões de euros, que disparam em 2011 para 48,6 milhões. E 2012, com a aquisição, Rui Alegre assume-as, e sobe a exposição para 60,7 milhões. Em 2014 a CEMG tem emprestado 135 milhões de euros à empresa de navegação já gerida por Rui Alegre. A Portuscale acaba por falir e o Montepio a encaixar o prejuízo. E as autoridades a investigarem o negócio.

O PÚBLICO confrontou Tomás Correia com o teor do email que questionava os seus actos de gestão. Mas não obteve respostas às questões em concreto que suscitava. Para Tomás Correia, os factos em questão enquadram-se numa "linha editorial" que "visa sistematicamente atingir o bom nome de instituições e de pessoas, com o objectivo de daí serem retirados dividendos eleitorais no contexto do processo eleitoral em curso na Associação Mutualista". 

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