Ana Paula Vitorino: "Se continuarmos por este caminho, o porto de Setúbal deixará de ser viável"

Perante o arrastar da greve de estivadores, a ministra dramatiza situação. E afirma que, no final desta semana, as rotas que costumam utilizar o Porto de Setúbal terão uma redução de 70%.

Ana Paula Vitorino: “Se continuarmos assim, o Porto de Setúbal deixará de ser viável” Público/Renascença

A ministra do Mar está confiante no bom desfecho das negociações que está a mediar entre estivadores e administração portuária em Setúbal, mas vai fazendo os seus avisos, em entrevista ao PÚBLICO/Renascença que pode ouvir esta quinta-feira a partir das 12 horas. E reage às críticas dos parceiros de coligação de Governo, PCP e BE, que pediram a sua demissão: "Há uns que tentam resolver o conflito defendendo os trabalhadores e os postos de trabalho e há os outros que se põem numa situação de dizerem sistemática e recorrentemente que pedem a demissão dos ministros".

As negociações com os estivadores vão ser retomadas para a semana. O que acha que vai ser possível fazer para que se chegue finalmente a um acordo?
É absolutamente essencial resolver a questão do Porto de Setúbal. Não é aceitável que exista um tão elevado número de trabalhadores eventuais e que uma infra-estrutura como aquela, que serve de suporte para as exportações, prejudique as empresas. Temos que trabalhar fortemente para conseguir um acordo entre as partes. Continuamos a ter encontros bilaterais com cada uma das partes. Julgo que a solução está muito mais perto do que se possa pensar. Tem que ser um acordo que acabe com a precariedade completamente desregulada no Porto de Setúbal. Existe um acordo de princípio quanto ao número de pessoas a admitir. 

Falou-se de 56. A percepção é de que esteve-se muito perto do acordo. O que falhou? Falta vontade por parte do sindicato?
Quando existe um conflito, a culpa nunca está exclusivamente de um lado. Mas espero que muito em breve possa haver boas notícias

O primeiro-ministro já disse que a situação no porto de Setúbal é culpa sobretudo de um sindicato que “felizmente” não se disseminou noutros portos. É da mesma opinião?
Existem cinco sindicatos de estivadores diferentes e com pesos diferentes. O SEAL, que está em greve, tem uma grande expressão nos portos de Lisboa e Setúbal, também no Caniçal e algum peso na Figueira da Foz. 

Este é o mais intransigente?
Não diria isso. Mas os outros não têm pré-avisos de greve.

Só tem havido praticamente em Setúbal e Lisboa.
Exactamente. Lisboa não tem piores condições de trabalho do que outros portos. É onde existe uma maior taxa de estivadores efectivos, 75%. Setúbal tem 78% de trabalhadores eventuais. A média nacional é de dois terços de trabalhadores efectivos. Em termos de remunerações, as médias apontam para médias em Lisboa superiores a Leixões. 

Estamos a falar de quanto?
As remunerações base andam na ordem dos 1600 euros. Depois acresce a isso as horas extraordinárias. A média salarial de Setúbal também é superior à do Porto de Leixões. Em Setúbal, o problema essencial é a elevada precariedade.

O bispo de Setúbal disse que a situação roça a inconstitucionalidade e apelou a uma solução que não passe por cima dos trabalhadores e que não ponha em causa a economia da região, muito dependente do porto e da Autoeuropa.
Como todas as regiões do país. Se pusermos em causa peças fundamentais do funcionamento da nossa economia, estamos a pôr em causa postos de trabalho. Se isto se passasse noutro porto, o impacto também seria importante. O Porto de Setúbal tem importância, mas no contexto nacional vale 6% da movimentação de carga. Mais de 50% da movimentação de carga nacional é feita por Sines, e 23% no Porto de Leixões. Apesar de valer 6%, tem uma importância estratégica porque é um porto industrial, que movimenta matérias-primas e produtos acabados de alto valor (temos a Autoeuropa, a Secil, a Navigator, a Siderurgia Nacional). Se isto se passasse no Porto de Leixões punha em causa toda a economia do norte de Portugal.

Já estamos a perder quota para portos espanhóis?
Sim. Estamos a fazer tudo por tudo para que armadores que deixem de utilizar Setúbal por causa da greve utilizem outros portos nacionais, como Leixões (que já está em sobre-ocupação) e Sines. Há empresas que preferem ir para Espanha. Estima-se que no final desta semana, as rotas que costumam utilizar o Porto de Setúbal se reduzam 70%. 

O não haver acordo pode pôr em causa o futuro do porto de Setúbal?
Pode, com certeza. É isso que está em causa. Se continuarmos por este caminho, o Porto de Setúbal deixará de ser viável e ficarão postos de trabalho em causa, empregos directos e indirectos. Estamos a fazer o nosso melhor para mediar. Mas estamos a tomar as medidas necessárias para que os outros portos nacionais possam receber todas as cargas que eram até agora movimentadas em Setúbal. Em matéria de "ro-ro", é possível em Leixões, Aveiro, em Lisboa, em Sines e em Portimão, que tem excelentes condições de parqueamento. Evidentemente, depende dos navios. O terminal de Sines onde se pode fazer "ro-ro" tinha pavimento em gravilha, que não é aconselhável para viaturas ligeiras. Está-se a fazer um novo pavimento. Temos condições para absorver todo o tráfego que é movimentado em Setúbal.

O PCP e o BE têm estado ao lado dos estivadores. O BE, pela voz de Heitor de Sousa, já pediu a sua demissão do cargo. Esta terça-feira, a líder do BE foi ao porto de Setúbal. Como é que se sente sendo ministra de um Governo apoiado pela esquerda e que vê os outros partidos a pedir a sua demissão?
Se não tivesse resiliência, o melhor seria mudar de actividade. Os ministros têm que estar preparados para as críticas justas e injustas vindas seja de onde for. Há duas questões que não posso deixar de colocar a essas duas pessoas que referiu e que muito prezo. Por que é que só se lembraram deste assunto agora? Houve mais de 100 pré-avisos de greve deste sindicato. E entre este sindicato e o sindicato de Leixões que diz exactamente o contrário do que este sindicato diz e os sindicatos de Sines, quais é que o BE e o PCP apoiam? Há uns que tentam resolver o conflito defendendo os trabalhadores e os postos de trabalho e há os outros que se põem numa situação de dizerem sistemática e recorrentemente que pedem a demissão dos ministros. É mais uma figura política que outra coisa qualquer. Do ponto de vista político, tem que haver uma clarificação sobre que sindicatos apoiam, uma vez que existe um conflito entre sindicatos e também, não onde estavam no 25 de Abril, mas nos anos em que se formou este problema no porto de Setúbal? As centrais sindicais têm sido muito prudentes sobre esta matéria. Gostava também se saber o que esses partidos propõem para a resolução do problema.

No passado, PCP e BE não se tinham manifestado ao lado do SEAL, é isso?
No passado, não se pronunciaram sobre esta matéria. Não se trata de funcionários públicos e a resolução do assunto não depende de uma resolução do Governo.

Existe ou não um clima intimidatório relativamente a esta greve?
De parte a parte, tem havido declarações. Que há carros que são desfeitos, há, que há pessoas que recebem ameaças, também há. Há pessoas que foram agredidas fisicamente, também há. Isso são matérias de justiça. Essa investigação não cabe ao Governo fazer. O pedido que fiz a todas as partes foi que, havendo queixas, formalizem essas queixas. Havendo queixas de condições de trabalho, de que pessoas afectas a diferentes sindicatos não têm o mesmo tratamento, solicitei ao sr. ministro do Trabalho uma inspecção da Autoridade das Condições do Trabalho e ao Porto de Leixões que fizesse também um levantamento. O Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT) deve também avaliar se existe violações das regras de licenciamento de empresas de estiva.

O IMT falhou porque ao longo dos anos permitiu que se chegasse a esta situação de precariedade em Setúbal.
O problema é que a legislação foi alterada substancialmente em 2014, criando regras distintas, e o IMT não acompanhou tão depressa quanto deveria a fiscalização com base na nova legislação que é mais permissiva do que era. Houve uma disfunção temporal.

O interesse chinês por Sines e pelo Barreiro

Decorreu por estes dias a visita do Presidente chinês a Portugal. Receia que este clima de instabilidade afaste o interesse pelo porto de Sines?
Existe um grande interesse dos empresários chineses bem como de outras nacionalidades, como americanos (não relativamente aos mesmos terminais), indianos, holandeses. O Porto de Sines está no top 10 europeu. Relativamente à República Popular da China, existe um interesse acrescido relativamente aos contentores por causa da nova Rota da Seda que pode atingir o Atlântico através do Porto de Sines. 

O que é preciso para que esse interesse se concretize?
É preciso um novo terminal de contentores. Estamos a falar de 400 milhões. Mas o modelo é de regime de concessão, portanto, a parte pública de investimento é muito marginal. Outros países têm muito interesse em explorar um novo terminal de gás natural liquefeito. Relembro uma entrevista do sr. embaixador dos EUA. 

China poderá entrar também no futuro terminal de contentores do Barreiro. Já teve propostas concretas?
Houve manifestações de interesse por parte de várias entidades, dos actuais operadores do Porto de Lisboa, da Maersk, empresas chinesas. Tinha dito que, antes de lançar o concurso, iria fazer uma consulta pública para manifestações de interesse mas não preciso de a fazer. Está ultrapassada essa fase.

A instabilidade de Setúbal não afasta algum desse interesse?
Relativamente a Sines e Leixões, não se coloca esse tipo de questões. Relativamente a Lisboa, já é diferente. 

Voltando ao Presidente da China, aqui em Lisboa falou não só de portos mas da economia do mar. Em que se pode concretizar isto?
Toda a economia do mar tem a ver com aquacultura, indústria de transformação do pescado, biotecnologia aplicada a produtos como medicamentos e cosmética, ou energias renováveis oceânicas. Já temos equipas de cientistas portugueses e chineses a trabalhar em conjunto no Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Parece que só são sexy os assuntos quando têm greves. Mas não. Por exemplo, nos portos de pesca do continente tivemos um investimento de 400 milhões de euros. Nestes três anos, tivemos já um investimento de 164 milhões. Estamos a falar de aquacultura, transformação do pescado. Na indústria transformadora, vão criar 504 novos postos de trabalho e na aquacultura 263 postos de trabalho. E são investimentos que internalizam grandes inovações tecnológicas. Entramos numa fábrica desta área e parece que estamos na Web Summit (risos). Portugal actualizou-se e dá cartas neste sector. Não é só no turismo que estamos na moda!

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