O testamento do Doutor Godard

Com 88 anos acabados de fazer, Godard estreia o filme mais arrojado que podemos ver este ano, uma pequena fogueira que deixa o cinema em chamas. Filme sobre a violência – da história, do mundo, das “ardentes esperanças” – onde o discurso poético e o discurso político se conciliam e se contradizem. Não forçosamente um “último filme” – Godard tem energia para dar e vender – mas certamente o filme mais testamentário do seu autor.

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Já perto do fim de O Livro de Imagem, a voz áspera de Jean-Luc Godard cita, a partir daquele trono em off que é o seu em todo o filme, uma frase de Bertolt Brecht: “só o fragmento pode conservar a autenticidade”. Tirada do seu contexto, ou posta no contexto deste filme, é como se a ideia de Brecht se dirigisse ao Livro de Imagem e ao seu método, sumamente godardiano, que não é novo mas é aqui levado a um paroxismo: um filme feito na mesa de mistura, um filme de mestre mixeur, uma colagem fragmentária que, dir-se-ia, fragmenta (e às vezes violenta, destrói) os próprios fragmentos – que por sua vez podem ser restos, resíduos, “ruinas”, de tudo e vindas de todo o lado, do cinema, da televisão, da pintura, da literatura, da música e, evidentemente, através de tudo isso, do mundo, da História, da realidade (sendo que também se ouve JLG propor que se ponha “realidade na realidade”, ideia poderosa num mundo cada vez mais cheio de “virtualidades” e de fakes). Talvez, no fundo, uma imagem seja apenas isso, um fragmento, portador da sua autenticidade. Este é o seu Livro, das imagens e dos fragmentos.

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Godard refere-se ao cinema e ao seu “desmembramento”, que ele acelera, trabalhando como se tivesse por base uma compilação de clips do YouTube da pior qualidade

Fala-se muitas vezes da “pedagogia godardiana”, que pode assumir várias formas mas tem neste exemplo uma boa expressão: ao aludir, no interior do filme, ao seu processo de trabalho, torna-se claro que para JLG a diferença entre a “fabricação” de um filme e o objecto resultante desse trabalho é mínima, o “fabrico” já é o filme, já é o objecto – talvez por isso, se se pode dizer que nele a obsessão pelo fragmento é antiga (que são os jump cuts de O Acossado?...), e o que o trabalho de colagem e “mixagem” é uma constante da sua obra desde as História(s) do Cinema (mas com muitos anúncios anteriores), o filme que mais nos vem à memória durante o visionamento do Livro de Imagem é aquele seu pequeno ensaio dos anos 80, Scénario du Film Passion, obra “pedagógica” (como nasce um filme?) que punha em paridade o trabalho do filme e o filme (era, para usar terminologia simples e vaga, um making of de “Passion”, estreado em 1982). Aí, víamos Godard, em pequeno demiurgo, perante um ecrã branco, a introduzir nele, pelas artes mágicas da tecnologia e da mecânica, formas, cores, sons, movimento. Aqui, podemos imaginá-lo na mesma posição, só que o ecrã está negro e ao negro estamos sempre a voltar quando as formas e os movimentos se suspendem – como se fosse le noir du temps, o “negrume do tempo”, para citar outro dos pequenos filmes de Godard (Dans le Noir du Temps, dos anos 2000) cuja lembrança O Livro de Imagem convoca. E este é certamente, e de muitas maneiras, um filme sobre o “negrume do tempo”.

Da “pedagogia” vem também aquele momento em que Godard elabora sobre a diferença entre a melodia e o contraponto. Esse é também o seu método, a dissonância. Método e preocupação, souci: é preciso que haja “contradição”. É uma forma de ver, por exemplo, o longo (e o mais contínuo) segmento do Livro de Imagem, aquele em que, apoiado na narração de excertos de um livro de Albert Cossery, Godard se detém sobre o Médio Oriente e o mundo árabe, entre alusões à conflituosa política da região (veladas referências à Palestina e a Israel) e a uma memória mais ou menos mítica e romântica (a “Arabia Felix”): o mundo árabe como “contradição” do mundo ocidental, “excepção” ameaçada pela “regra”, de uma forma que faz lembrar o nada eufórico filme que fez a seguir à queda do Muro de Berlim (Allemagne, Neuf Zéro), onde também se tratava de registar a aniquilação de uma “contradição”, de uma “dissonância”.

Expressões da violência da História, com certeza. E esse é o grande tema do Livro de Imagem. Imagens da guerra e da violência, tiradas da ficção mas também tiradas da “história” (velhos filmes de actualidades ou reportagens televisivas), sucedem-se e prolongam-se umas nas noutras, como naquele raccord (absolutamente genial) em que à imagem de um caça da II Guerra decorado com uma pintura de dentes de tubarão se sucede a bocarra de um verdadeiro tubarão (que até podia vir do filme de Spielberg). Este violento diálogo com a violência, que também tem a forma de um diálogo do cinema com o mundo, subjaz ao filme todo, mas há uma espécie de bizarra (e irónica) conformação – e para isso Godard serve-se de passagens dos escritos de Joseph de Maistre, filósofo francês reaccionário e “ultramontano”, que explicou (ou aceitou) a Revolução Francesa como um “castigo de Deus”. Daí o carácter “sagrado” da própria revolução, mas também a natureza “divina” da guerra e da violência, mencionadas em frases dispersas ao longo do filme e que assim, descontextualizadas, têm um alcance poético (ou “poético-político”) bastante vasto, ao trazerem a violência, a necessidade do castigo (“o carrasco é a pedra angular da sociedade”, ouve-se também, sempre a partir de Maistre), para o coração da História e para o coração do mundo.

Que pode o cinema perante isso, perante a História e perante essa violência? Pouco, esboroa-se: O Livro de Imagem também é um relato do embate do cinema com a História (a do século XX, incluindo as primeiras décadas do século XXI), embate violento que resulta numa multitude de fragmentos desfigurados. Porque as “imagens do cinema”, não raras vezes, são violentadas na mesa de mistura, cortadas aos pedaços, as proporções e dimensões alteradas, as cores desbotadas, queimadas. O cinema arde, aqui, talvez por falta de lugar, talvez por se ter tornado inútil, talvez por se ter tornado “arte” (como também se ouve dizer, quando uma actividade continua a ser praticada depois de ter perdido a sua utilidade torna-se numa “arte”, e depois desaparece – e parece evidente que Godard se refere ao cinema e ao seu “desmembramento”, que ele acelera, trabalhando por vezes como se tivesse por base uma compilação de clips do YouTube da pior qualidade). Mas é uma fogueira de uma beleza inexcedível, na quantidade de raccords, rimas, contradições, leitmotivs (os comboios, que tanto “chamam” a memória do Holocausto, e as mãos, na sua ambiguidade essencial: as mãos que “acusam”, as mãos que “trabalham”) extraídos por Godard da sua montagem, do diálogo de imagens com imagens, imagens com sons, sons com sons (sendo que o trabalho de som é uma coisa assombrosa, sobretudo na sua versão para salas equipadas com o sistema 7.1, o que não é o caso do Cinema Ideal, que mostrará uma versão preparada para Godard para salas com sistemas tecnologicamente menos avançados – o filme está lá todo, o som também, a relação do espectador com eles é que muda, torna-se mais “intelectual” e menos “sensorial”, e já agora convém notar quão peculiar é o facto de ser um cineasta de 88 anos, a partir do seu atelier caseiro, a puxar os limites da tecnologia a um ponto quase insustentável).

Tudo isto, mas também ele próprio, Godard, que mais uma vez filma duma posição de “solidão” e de “fim”. Tema poético antigo, certamente caro ao recanto mais romântico da sua alma, mas aqui um pouco mais do que apenas poético. Está off, a sua voz está escondida por cima do edcrã, mas pelo ecrã passa pelo menos uma imagem dele, aquela fotografia de infância que fora a imagem central de JLG/JLG, o “auto-retrato de Dezembro” nos anos 90; ou a memória de amigos e companheiros (as efigies de Rivette e Rohmer); ou as mulheres, Karina no princípio, vinda do anos 60, a despedir-se (“je ne t’embrasse pas tendrement”), e perto do fim o nome e a voz de Anne-Marie Miéville. Mas é uma imagem de “substituição” a imagem mais poderosa que Godard traz de si para dentro do filme, naquele final onde os planos da dança e da síncope de um dos protagonistas do Le Plaisir de Max Ophuls tomam conta do ecrã, em silêncio, depois da voz de Godard se ter debatido com um ataque de tosse (em si mesmo, o momento mais pungente do filme) enquanto fala das “ardentes esperanças”. Também elas ardem, também a si próprio o velho cineasta lança fogo, como se por via das imagens de Ophuls encenasse o seu desaparecimento. Só faz lembrar uma coisa: a “auto-encenação” do seu desaparecimento que Manoel de Oliveira fazia em Visita ou Memórias e Confissões. Em Oliveira ficava um ecrã branco, em Godard fica um ecrã negro.

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