O que nos mostra a França

Seria importante que um discurso ponderado e prudente do centro político, designadamente ao centro-esquerda, pudesse existir.

As recentes convulsões públicas em França (e na Bélgica), continuadas e violentas, mesmo se admitidas pelas autoridades de acordo com o bom princípio e prática francesa de liberdade e expressão cívicas, deixam necessariamente uma dúvida. De que se trata, na verdade? De uma realidade espontânea e voluntária, disseminada em grande velocidade na Internet, nascida de facto como um protesto cívico contra aumentos de combustíveis e do custo de vida? Ou, em alternativa, trata-se de um movimento organizado e dirigido, quase de forma “militar” na sua aparência, a que se juntam depois bem-intencionados e legitimamente indignados cidadãos, mas do qual não se sabe muito mais do que a vontade de criar disrupção política e receio nas ruas, pedindo demissões e novas eleições presidenciais e exigindo que qualquer diálogo com o poder seja filmado por câmaras de televisão? E todos sabemos como a generalidade dos políticos em funções, ali e em todo o lado, perderá sempre no jogo televisivo para um jovem e garboso cavaleiro da justiça das ruas, erigindo-se pelos injustiçados contra os detentores do poder...

Sem querer ser pretensamente conspirativo, é um facto que a renomeada Frente Nacional de Le Pen está em igualdade – e até à frente – nas sondagens com o partido do Presidente Macron, cuja popularidade tem decrescido a pique, e disputará a sério todas as próximas eleições. Republicanos, a direita tradicional, quase não se vêem e os socialistas franceses simplesmente desapareceram nas intenções de voto, onde apresentam sempre menos de 10%, bem abaixo da extrema-esquerda marxista, um elemento extraordinário que ilustra bem como uma revolução no espectro partidário pode ocorrer em poucos anos numa consolidada democracia europeia.

A França vive, como outros países ricos da União Europeia, um sentimento de exaustão e de injustiça. Para uns causado pela depredação gerada por um capitalismo cada vez mais global e mais incisivo. Para outros pela pouco cuidada gestão das ferramentas compensatórias de um Estado social. E, ainda para outros, que são muitos, um sentimento de exaustão e de injustiça nascido, de forma simples, do acolhimento exagerado de estrangeiros, de árabes, de africanos, de refugiados, que roubam os empregos aos franceses, seja lá esses quem forem, abusam da segurança social e tornam as ruas um local de medo e de luta.

Este é o adubo sensitivo onde a extrema-direita ganha força e onde qualquer racionalidade acaba, especialmente se do outro lado apenas existir, como contra-resposta, uma emocionalidade lírica que diz pouco às pessoas, uma defesa abnegada mas inconsequente da diferença e da justiça pela diferença.

Por isso seria importante que um discurso ponderado e prudente do centro político, designadamente ao centro-esquerda, pudesse existir. Mas este não é o tempo da ponderação e da prudência.

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