O emprego de qualidade e a “circulatura” do quadrado

"Nestes últimos três anos, criou-se um saldo positivo de quase  350.000 postos de trabalho, 80 por cento dos quais é trabalho de qualidade, porque é trabalho sem termo."

Esta frase, dita no programa "Quadratura do Círculo" (SIC), é da autoria de um dos elementos dos (selectivos) quadrantes políticos que lá circulam, Jorge Coelho.

Apesar de, profissionalmente, ter andado mais de quarenta anos à sua procura nos locais de trabalho, há muito que me intriga esta expressão: “trabalho de qualidade” ou “emprego de qualidade”.

Volta e meia, lá vem a sua invocação pública (e quase sempre televisiva), não só por pessoas com grande destaque político-televisivo (como é o caso de Jorge Coelho) mas, mesmo, por pessoas com grande destaque político-governamental.

Por exemplo, ainda há uns meses (e já não foi a primeira vez), pelo próprio primeiro-ministro: “Primeiro-ministro afirma que a grande batalha de Portugal é o emprego de qualidade”.

Ora, dito o que foi dito pelo Dr. Jorge Coelho no tal programa televisivo “Quadratura do Círculo”, a quem durante dezenas de anos “circulou” por locais de trabalho, “quadra-se-lhe” no pensamento uma aguda dúvida sobre se o trabalho de alguém, só por ser trabalho sem termo é um "trabalho de qualidade".
E então surge-lhe a dúvida sobre qual o critério, para além desse (se é que mais algum tem), o de ser um trabalho sem termo, que o Jorge Coelho adopta para definir "trabalho de qualidade".
Assim, talvez o mais isento e objectivo para definir “trabalho de qualidade” seja recorrer à ajuda de uma entidade incontestável nesta matéria, a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Há muitos anos que a OIT tem como conceito central na sua missão e acção em todo o mundo, considerando-o como “chave do progresso social” e do “desenvolvimento sustentável”, o emprego de qualidade, concretamente, na formulação de decent work ou “trabalho digno”,  conceito que, aliás, também já foi há muitos anos e continua a ser formalmente adoptado por outras instituições internacionais e europeias, como, por exemplo, o Parlamento Europeu.

E quais são então, segundo a OIT, as principais características a exigir para se qualificar qualquer trabalho como “trabalho digno”?
- um trabalho com direitos, ou seja, um trabalho com efectiva aplicação de todos os direitos legais, regulamentares e contratuais legalmente conferidos a quem o realiza;
- um trabalho seguro e saudável, ou seja, um trabalho que garanta condições de segurança e saúde preventivas dos riscos para a vida, integridade física e saúde a quem o realiza;
- um trabalho bem remunerado, ou seja, um trabalho com uma remuneração digna, justa e equitativa;

- um trabalho qualificado e qualificante, isto é, que garanta capacitação e qualificação por via de formação como suporte de desenvolvimento profissional e pessoal e integração social;

- um trabalho enquadrado por negociação e contratação colectiva da qual resultem que confira consequências concretas na melhoria das condições de trabalho e das remunerações, se bem que tendo em conta a perspectiva da redução do desemprego e o respectivo contexto técnico, económico, organizacional e empresarial;

- um trabalho sem qualquer tipo de discriminação, nomeadamente entre homens e mulheres;
- um trabalho que permita a conciliação entre a vida profissional e a vida familiar;

- um trabalho em que quem o realiza seja, em todos os aspectos e tendo em conta a sua condição (física, mental e social), respeitado na sua dignidade profissional e pessoal;

Ora, sob esta referência de definição de um “trabalho digno”, de um “trabalho de qualidade”, é a própria OIT que, em relatório divulgado em Outubro de 2018 sobre a qualidade do emprego em Portugal (Trabalho Digno em Portugal 2008 – 18 – Da crise à recuperação), alerta para a falta de qualidade do emprego e para os baixos salários em Portugal.

A isto não será alheio o efeito de degradação de condições de trabalho e estagnação (se não diminuição real ou mesmo nominal) de salários que, muito por efeito da “crise” financeira e da economia mas, também, pelo efeito da desregulamentação de direitos laborais[6] implicada pelas alterações à legislação laboral que, desde há pelo menos quinze anos (e muito especialmente desde 2011), com a publicação dos Códigos de Trabalho de 2004 e 2009[7] e, mormente, mais recentemente, das alterações “reformas do mercado de trabalho”[8] introduzidas pelo Governo anterior e que, no essencial, o actual Governo (ainda) não reverteu. 

Bom, mas admitindo o critério de Jorge Coelho para definir “trabalho de qualidade”, o de bastar ser um trabalho sem termo, não ser um trabalho precário (um trabalho a termo ou temporário), ainda assim, para quem durante anos acompanha o que se passa nos locais de trabalho, resta até a dúvida de se mesmo esses 80 por cento dos 350.000 trabalhadores “sem termo” não serão ainda, de certo modo, precários...
Pierre Bourdieu esclarece isso, o quanto a insegurança objectiva que é a efectiva precariedade laboral de uns trabalhadores se projecta, de facto, subjectiva e objectivamente, na condição dos outros, mesmo que estes não sejam formalmente trabalhadores precários, mesmo que estes estejam legalmente contratados “sem termo”, repercutindo-se tal, e muito, na (falta de) qualidade (também) do seu trabalho: "A insegurança objectiva é a base de uma insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia desenvolvida, o conjunto de trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou não foram ainda directamente atingidos."[4]
Dito o que foi dito e como foi dito (com tanta assertividade e sonoridade de voz) por Jorge Coelho, e sem que houvesse qualquer contraditório quer pelo jornalista moderador do programa  quer pelos outros participantes neste, muita gente que o viu e ouviu terá ficado imediatamente convencida de que a grande maioria (80 por cento) do tal saldo positivo de quase 350.000 postos de trabalho criado nos últimos três anos é, sem dúvida, “trabalho de qualidade”.
Contudo, apesar da assertividade e sonoridade de Jorge Coelho, há quem disso continue com dúvidas...

Não apenas quem acompanha e observa de perto e continuadamente o que (realmente) se passa nos locais de trabalho “à procura” do “trabalho de qualidade” na definição já referida da OIT.

Também a própria OIT quando, no citado Relatório de Outubro de 2018 (Trabalho Digno em Portugal 2008 – 18 – Da crise à recuperação) alerta para a falta de qualidade do emprego e para os baixos salários em Portugal, continua com fundamentadas dúvidas sobre as assertivas e sonoras certezas de Jorge Coelho (e, de certo modo, por omissão, do jornalista moderador do programa e dos outros participantes neste).

Enfim, económica, social e politicamente, é bom que, “nos últimos três anos se tenha criado um saldo positivo de quase 350.000 postos de trabalho”.

E também é bom que “80% desses postos de trabalho sejam trabalho sem termo”.

Mas, daí a pretender logo concluir que estes 80% de postos de trabalho (e, como é óbvio, ainda mais os restantes 20% a termo ou temporários, precários) sejam “trabalho de qualidade”, talvez seja demasiado precipitado.

Talvez seja mesmo económica, social e politicamente perigoso, visto que isso é, consciente ou inconscientemente, omitir, escamotear do debate (e acção) social e político aquilo – as condições humanas, sociais e materiais de trabalho – que deve ser referência para, citando outra vez o primeiro-ministro, “a grande batalha de Portugal”, o “emprego de qualidade”.

Ora, “batalhar” por um “emprego de qualidade” sem “batalhar” (económica, social, institucional e politicamente) pela melhoria das condições de trabalho e de salários dos trabalhadores, mesmo que estes não sejam trabalhadores precários (e, é claro, muito mais se o forem), mesmo que o seu trabalho seja um trabalho seja sem termo, é, de algum modo, mesmo sendo essa (inglória) “batalha” só na “Quadratura do Círculo”, como “batalhar” pela ... “circulatura” do quadrado.

[1] Fragilização dos trabalhadores nas relações de trabalho, pela sua precarização e individualização , bem como  pela facilitação dos despedimentos e se não bloqueamento, estagnação objectiva da contratação colectiva;

[2] Aprovados, respectivamente, pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto e pela Lei 7/2009, de 12 de Fevereiro;

[3] Em que se destaca a Lei 23/2012, de 25 de Junho, que se mantém em vigor;

[4] Pierre Bourdieu - Contrafogos - Edição portuguesa – Edições Celta, 1998 –pag. 115

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