China, 2049

Quando Henry Kissinger se encontrou pela primeira vez com Mao Tsé-Tung, para preparar a famosa visita de Richard Nixon à China, colocou-lhe a questão de Taiwan. O líder chinês limitou-se a responder: “Não se preocupe, podemos resolvê-la daqui a 100 anos”. Dois anos depois, Kissinger e Mao voltaram a conversar pessoalmente sobre o assunto, tendo o primeiro feito uma das suas habituais graças: “então, daqui a 100 anos tratamos da questão de Taiwan”. O segundo corrigiu: “Daqui a 98 anos”.

A visita do Presidente Xi Jinping a Portugal não acontece num momento qualquer. Ela ocorre desde logo em plena transição de poder no sistema internacional, devido à conjugação do declínio relativo da potência dominante — os Estados Unidos — e da ascensão da “potência de segunda ordem”, a China. Mas também na sequência do XIX Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), de outubro de 2017, que afirmou em definitivo o poder de Xi Jinping — transformado numa espécie de novo imperador — e assumiu o objetivo da China de tornar-se uma grande potência mundial, tendo já uma data marcada no calendário: 2049. 

Na tradição da cultura e pensamento político do país, orientados pela simbologia das datas e pelo tempo de longa duração, há dois momentos que marcam a definitiva afirmação mundial da China: 2021, ocasião dos 100 anos da fundação do PCC, estando previstas grandes celebrações para comemorar o centenário; 2049, data que assinala os 100 anos da reunificação da China continental e da fundação da República Popular da China, sendo que, se como referiu Mao Tsé-Tung, no dia 1 de outubro de 1949 o país “ergueu-se de novo”, daqui a 30 anos ele será “grande outra vez”. 

Já se sabe bastante sobre a grande estratégia de Xi Jinping. Ela começa dentro de casa e projeta-se daí para o exterior. O primeiro pilar é a afirmação da sua liderança incontestada, que passou pelo afastamento de todos os principais rivais em nome do combate à corrupção, pelo fim do limite de mandatos presidenciais e pela consagração do seu pensamento sobre “o socialismo com características chinesas na nova era”. O segundo é a consolidação do regime comunista e a adoção de todas as medidas necessárias para evitar que a modernização precipite a sua queda, como na URSS. O terceiro pilar é a rejeição do modelo e dos valores da democracia liberal e pluralista. O quarto consiste na ressurgência de um nacionalismo (mais ou menos populista) anti-ocidental. O último pilar reside na proposta de uma ordem internacional chinesa, alternativa à norte-americana, a que alguns autores chamaram de “capitalismo não democrático de Estado”.  

Também já se sabe muito sobre o que a China está a fazer para implementar esta sua estratégia assertiva a nível regional e internacional. Ela está a construir a mais capaz e bem financiada força militar no mundo logo a seguir à dos EUA. Está a aumentar e diversificar o seu poder nuclear. Está a construir postos militares avançados no Mar Sul da China. Está a usar incentivos e penalidades económicas para estender influência sobre outros Estados, penetrando por esta via em várias regiões - da Ásia do Leste a África, até partes da Europa e mesmo da América Latina (por exemplo, na Venezuela). Está a reconstruir as versões terrestre e marítima da Rota da Seda, conhecida agora por “Belt&Road Initiative” (BRI). Está a reforçar a “quase-aliança” com a Rússia (que só não é aliança formal porque a política externa chinesa não o permite). Está a aprofundar a institucionalização dos BRIC. Criou um Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) alternativo ao Banco Mundial.

Caso ainda houvesse dúvidas sobre qual é o objetivo chinês, Xi Jinping tem se esforçado por dissipá-las. Aproveitando o facto de os EUA estarem a abandonar em vários temas e espaços o seu papel de líderes da ordem internacional liberal, em ocasiões como, por exemplo, a Cimeira de Davos de 2017 o Presidente da China tem declarado que o seu país está pronto para assumir-se como o garante da ordem internacional.

Assim, tal como já acontece hoje, nas próximas décadas é inevitável que a China pese cada vez mais na política externa de todos os países. Desde logo, os Estados europeus, que são muito afetados por esta mudança estrutural nas relações internacionais e estão a acomodar as suas estratégias externas à nova realidade, a começar pelas principais potências – Alemanha, França, Reino Unido - que têm feito uma muito forte aposta no incremento das relações económicas e políticas com Pequim. Mas Portugal não é uma exceção à regra.

As relações luso-chinesas serão sempre marcadas pela diferença de dimensão entre os dois países. Porém, essa enorme assimetria parece ser atenuada por uma capacidade de interlocução de Portugal com a China superior à sua dimensão e peso internacional. Parece existir da parte das autoridades chinesas um genuíno interesse em desenvolver as relações com o nosso país e uma predisposição para conferir-lhe um estatuto e um tratamento pelo menos próximo do que tem sido dado aos principais Estados europeus. 

Nos últimos anos esta realidade tem-se traduzido essencialmente no campo da chamada diplomacia económica, havendo um incremento significativo das relações comerciais entre os dois países e muito em particular do investimento chinês em Portugal. Este último continua no seu total muito longe do nível do de outros Estados (e a balança comercial de bens e serviços é-nos altamente desfavorável), mas destaca-se por se concentrar no tempo e num conjunto de setores estratégicos, tais como o financeiro, o segurador e o energético (com relevância nas energias alternativas), sendo exemplos disso o BCP, o BES Investimento, a Fidelidade, a EDP, a REN e a GALP (Brasil). Pequim tem ainda demonstrado interesse no eventual concurso público internacional do novo terminal multiusos do Barreiro e no porto de Sines. Importa também ter presente a linha ferroviária da “rota da seda”, que pode vir a chegar a Lisboa. 

Os dirigentes chineses estão certos. Em 2049, a China será uma grande potência mundial. Por isso, o estreitamento das relações económicas entre os dois países e o investimento chinês em Portugal são ambos muito positivos. Todavia, o Estado português tem de traçar bem as suas linhas vermelhas. Desde logo, tem de haver limites à entrada de capital da China (ou de qualquer outro país) em setores estratégicos nacionais — como são, por exemplo, os casos da rede elétrica ou da banca — principalmente se for para assumir posições de controlo. Depois, não nos podemos esquecer que fazemos parte de uma dupla aliança com os Estados Unidos e que dela depende a nossa segurança. Convém ainda recordar que, como dizia Franklin Delano Roosevelt, os Açores estão mais próximos da costa Leste dos EUA do que o Havai está da costa do Pacífico. Finalmente, há um consenso entre os partidos que têm governado Portugal desde a instauração da democracia relativamente à nossa adesão à ordem internacional liberal criada pelos norte-americanos. Mas também convinha que a América (e a Europa) acordasse.
 

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