Falta de Ventura

André Ventura é doutor em Direito Público, pela University College Cork, na República da Irlanda, segundo uma rápida pesquisa online. Apesar de o Direito Penal ser um ramo de Direito Público, por certo que a sua especialização não é neste último âmbito da ciência jurídica, o que tornaria as suas recentes afirmações, em entrevista, ainda mais graves.

Limito-me às objecções do prisma da ciência conjunta do Direito Penal, sendo certo que discordo do tom geral das suas proclamações políticas, com sabor a uma direita trauliteira e parecendo que depois da Andaluzia, Ventura se prepara para criar um partido de extrema-direita no nosso espectro político. Tem-se escrito – e bem – que o verdadeiro populismo não tem encontrado espaço seguro nos ventres dos partidos lusos, mas eis que o movimento “Chega” pode estar aí para preencher um suposto espaço que, para mim, não devia existir.

Mas voltemos ao Penal. Não tem razão André Ventura quando defende a prisão perpétua, por mais horrendos que sejam os crimes. Ou então deseja uma nova Constituição, por não apenas esta o impedir terminantemente, como também pela circunstância de a ressocialização dos agentes de delitos estar inscrita na Lei Fundamental e no Código Penal. Ficamos a saber, pois, que aquele professor entende que a CRP actual não serve o país. Não há estudos criminológicos que sustentem que a introdução da prisão perpétua diminua a taxa de criminalidade, por uma ideia de senso comum de que a prevenção geral disso se encarregaria. Basta pensarmos em Espanha onde, em 2015, em contracorrente e sem explicação válida, esse modo de punição foi reintroduzido. Mesmo no crime violento não se conhecem dados oficiais de diminuição da criminalidade, um pouco como se passa com a pena de morte, essa ainda com mais abundantes estudos pelo mundo fora, sobretudo nos EUA.

Também se teria de alterar a nossa Constituição se Ventura conseguisse introduzir a castração química para os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual cometidos por adultos contra menores. Nenhuma pena pode envolver ofensa à integridade física do condenado e mesmo com o seu consentimento não admite o ordenamento jusconstitucional tal possibilidade, uma vez que estamos em face de um direito indisponível, por existir um interesse comunitário em que as formas de sancionamento respeitem, desde logo, as regras de Direito Internacional Público. De nada adianta dar exemplos de países com tradições jurídicas distintas ou até da mesma família, pois os quadros constitucionais não são necessariamente iguais e – felizmente – a jurisprudência constitucional também não. Existem sim tratamentos – que não passam pela castração – que se podem aplicar a condenados, de natureza psiquiátrica e psicológica. Diz o professor que não chega. Pois, mas tirando esta forma de despudorada tortura que defende, por certo não ignora que qualquer intervenção junto de um condenado, para ter efeito prático, exige a voluntariedade, sob pena de não haver adesão na intervenção pretendida.

Por fim, defende a elevação da pena de prisão, argumentando que ninguém entende que em casos concretos que menciona, em concurso de delitos de homicídio, a pena máxima seja de 25 anos. E, uma vez mais, em que estudos científicos se baseia o Prof. Ventura? Silêncio. Estas matérias são demasiado sérias para se tratarem com a ligeireza com que, salvo o devido respeito, o docente universitário o faz. Porque não 30, 35 ou 40 anos? Voltamos à advertência célebre de Costa Andrade de que em Portugal se legisla “à flor da pele” ou, como tenho dito, vivemos quase sempre ao sabor de uma política criminal de cabotagem. É politicamente rentável, parece, defender isto. Assim como dizer que se é politicamente incorrecto. Gosto desta última parte, mas quando ela se alicerça em conhecimento criminológico empírico e não em “achismos” ou meros tacticismos políticos.

E aqui está uma grande omissão em relação à qual faço a minha parte de mea culpa. Desde 2006, em Portugal, na Faculdade de Direito do Porto, o país conta com uma licenciatura em Criminologia, existindo já antes um curso de mestrado e, há alguns anos, também um doutoramento. Mais tarde, várias Universidades privadas disponibilizaram igualmente este curso, seguindo-se a Escola de Direito do Minho. O corpo de conhecimento derivado das dissertações de mestrado e de doutoramento de todas elas é já consistente e a entrevista de André Ventura, que se limita a ser “caixa de ressonância” de muita vox populi recorda-nos que estamos todos a falhar. Devíamos ser capazes de remeter aos ministérios competentes, aos deputados, aos Conselhos Superiores das Magistraturas, às suas associações sindicais, aos órgãos de polícia criminal, à Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e aos presidentes de câmaras municipais, entre outros, ao menos um sumário executivo dos principais resultados a que, em conjunto, Universidades públicas e privadas, temos chegado.

Claro que suspeito que, na grande maioria das hipóteses, o destino fosse o balde do lixo ou, a correr bem, uma qualquer prateleira para alguém, um dia, eventualmente ler. Mas a nossa obrigação estaria cumprida – mostrar que os resultados a que se chegam nestas investigações que seguem o método científico são, amiúde, contra-intuitivas, e que delas muito de útil se retira para melhorar o sistema de justiça: na lei, na prática das instâncias formais de controlo e ao nível da formação dos operadores judiciários. Os estudos de sentencing (decisões judiciais analisadas à luz de grelhas com o objectivo de delas retirar conclusões sobre até que ponto o Direito legislado está a ser aplicado, ou se há factores extralegais que não deveriam influir e existem) são paradigmáticos nesse domínio. Acabaram há anos com os Institutos de Criminologia e inexiste qualquer sucedâneo que reúna a investigação criminológica e da psicologia da justiça nacional existente e que, trabalhada, dirija recomendações aos poderes legislativo, executivo e judicial.

Estou convicto de que a existir um trabalho sério de uma instituição deste tipo, menos soundbites sem suporte científico seriam lançados. Ou melhor, continuariam a ser, por razões políticas, mas mais facilmente seriam postos a nu.

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