E que não fosse!
"E que não fosse" é um grito democrático. Que interessa se a defunta era feia, bonita, pobre ou rica, magra ou gorda? Não é por isso que uma morte se lamenta mais ou menos.
A Armanda, minha sogra, falava como se a língua portuguesa tivesse sido uma ideia dela. Ela consentia que outros a usassem (tinha pena) mas só gostava realmente de ouvir o português de artistas a inventar maneiras de falar de coisas que não se deixam dizer.
Por trás das expressões dela havia sempre um ponto de vista. Quando alguém, comentando a morte duma pessoa conhecida, lembrava "E era tão bonita...", a Armanda saltava logo com "E que não fosse!"
"E que não fosse" é um grito democrático. Que interessa se a defunta era feia, bonita, pobre ou rica, magra ou gorda? Não é por isso que uma morte se lamenta mais ou menos.
Nós, os portugueses, temos esse lado mórbido — quantos sabem de cor o "Noivado do Sepulcro"? — que gosta de acrescentar atributos aos mortos para a morte parecer ainda mais cruel e traiçoeira.
E ele gostava tanto da vida! Era tão pequenino! A alegria dele era encher o cachimbo! E esteve tantos anos a pintar o cabelo, a ver se enganava o tempo!
Palavra a Soares de Passos:
"Mulher formosa que adorei na vida,
E que na tumba não cessei d'amar,
Porque atraiçoas, desleal, mentida,
O amor eterno que te vi jurar?"
"E que não fosse" concentra a mente, impedindo-nos de andar a colher pormenores como se fossem míscaros para uma tartiflette.
Um exemplo:
"Coitado, adoeceu no avião para Toronto."
"E que não fosse!"
"Não fosse o quê?"
"Mesmo que não estivesse num avião para Toronto seria à mesma motivo de pena."
O pormenor dá vida, ajuda a contar a história mas às vezes dilui o que mais importa.