Oito mil milhões de questões!

Interessa saber se o défice não está a ser obtido à custa do sacrifício das famílias e do investimento no desenvolvimento futuro do país.

A Síntese da Execução Orçamental, relativa aos primeiros dez meses do ano, recentemente divulgada pela Direcção Geral do Orçamento (DGO) do Ministério das Finanças, permite destacar dois importantes indicadores das contas públicas na óptica da contabilidade pública: saldo total positivo de 258 milhões de euros e saldo primário, antes da despesa com juros, ligeiramente superior oito mil milhões de euros (4% do PIB).

Este desempenho observa-se apesar do crescimento da despesa com bens e serviços de +8,4% para 9,8 mil milhões nos primeiros dez meses de 2018 (nove mil milhões de euros no período homólogo de 2017), aumento esse “que reflecte, essencialmente, um montante elevado de pagamentos de dívidas de anos anteriores do Serviço Nacional de Saúde”. Note-se que o pagamento de dívidas contraídas em anos anteriores onera o défice em contabilidade pública – óptica de entrada e saída de dinheiro de caixa – mas não o défice em contabilidade nacional – óptica de compromisso da despesa – relevante para efeitos estatísticos na União Europeia, uma vez que essa dívida do sector da saúde corresponde a bens e serviços que foram adquiridos em anos anteriores e que, por conseguinte, já foram contabilizados no passado no défice público medido na óptica de contabilidade nacional. Um efeito favorável no saldo em contabilidade nacional que representará cerca de 0,4% do PIB.

É certo que os funcionários públicos e pensionistas recebem em Novembro deste ano a totalidade do subsídio de Natal enquanto, em Novembro de 2017, receberam metade do subsídio (a outra metade foi paga ao longo do ano). Mas o efeito da alteração no pagamento do subsídio de Natal explicará, em termos líquidos, menos de metade da variação favorável observada no saldo orçamental primário na Síntese Orçamental de Outubro.

Nem toda a despesa pública está incluída nestas estatísticas

Contudo, não estão incluídos na Síntese de Execução Orçamental quer o “empréstimo” aos lesados do BES (que, a prazo, poderá transformar-se em doação), quer mais uma tranche da doação de capital público à Lone Star, dona do Novo Banco, despesas que totalizam 913 milhões de euros.

Excepções, como as que se acabam de referir, às estatísticas de execução orçamental em óptica de contabilidade pública são contraproducentes. Note-se que aconteceu o mesmo com a injecção de capital na Caixa Geral de Depósitos (CGD) em 2017. O Ministério das Finanças pretendia que esse aumento de capital na CGD não fosse contabilizado pelo Eurostat no défice público desse ano pelo que, provavelmente por essa razão, essa despesa não foi incluída na Síntese de Execução Orçamental de 2017 da responsabilidade da DGO do Ministério das Finanças. 

É certo que essas estatísticas nunca são perfeitamente comparáveis, por exemplo, devido à regularização de dívidas do passado ou a outros factores não recorrentes. Mas o Ministério das Finanças deveria promover o regresso a uma interpretação estrita desta importante estatística mensal da DGO, incluindo toda a despesa pública em óptica de caixa, “doa a quem doer”. De contrário, ao excluir a despesa que, por razões de ordem política, não convenha incluir, entra-se num caminho sem regresso de estatísticas não comparáveis, contribuindo para a quebra da importância que esta publicação mensal da DGO tem na orientação e análise das políticas públicas e da política orçamental.

No cômputo, uma execução orçamental muito favorável

Défice zero ou saldo orçamental excedentário não é nem deve ser o objectivo da política orçamental, mas de facto é esse o objectivo das alterações às regras orçamentais europeias introduzidas na sequência da crise do euro, a partir de 2012. Uma quase proibição para-constitucional aos défices orçamentais dos países membros da Zona Euro, visando obrigar todos os países a registar sempre excedentes orçamentais.

A política orçamental deve ter como objectivo o desenvolvimento sustentado e rápido da economia, ou seja, melhorar o nível de vida das famílias a curto, médio e longo prazo.

Por conseguinte, uma execução orçamental que, embora promovendo alguma reposição de rendimentos e beneficiando do ciclo económico favorável, seja obtida à custa da contracção da despesa e investimento público (que cresce 5%, muito abaixo dos planeados 32%), está longe da ideal.

O saldo orçamental ligeiramente excedentário e um excedente primário de oito mil milhões de euros (ambos, sem a despesa com o Novo Banco) da última Síntese da Execução Orçamental impressionam. No entanto, valores um pouco “menos atractivos” para o défice, mas com mais despesa, socialmente justificada, e mais investimento público, iriam certamente traduzir-se no futuro em contas públicas mais saudáveis, em taxas de crescimento mais elevadas e numa mais acelerada taxa de redução do peso da dívida em relação ao PIB.

Os superavites orçamentais são efémeros no médio e longo prazo

E os EUA são disso um exemplo. O excedente orçamental do Governo Federal dos EUA da era Clinton, em parte obtido à custa de uma reforma do Sistema de Segurança Social que contribuiu para o empobrecimento das classes mais desfavorecidas, transformou-se em défices anuais a aproximar-se da marca de um bilião de dólares – 779 mil milhões de dólares no ano fiscal que se concluiu em Setembro de 2018.

É importante perceber como, num determinado país, foram obtidos os excedentes orçamentais e como foram (ou não) aproveitados esses excedentes na promoção do seu desenvolvimento.

Wolfgang Münchau, num artigo de opinião em que criticava a obsessão da Alemanha com excedentes orçamentais, utilizou o exemplo de Ceau?escu, também obcecado pelas contas públicas e pela dívida (externa). Vivendo na opulência e luxo de um monarca, adoptou uma estratégia de austeridade com a ambição de tornar a sua Roménia comunista numa potência credora, deixando o povo romeno literalmente à fome durante os anos 80. A Roménia, no início de 1989, foi capaz de pagar toda a dívida externa que tinha contraído até 1981 junto de bancos do Ocidente e atingiu um excedente orçamental de +8,2% do PIB. Ceau?escu e a mulher foram brutalmente assassinados na sequência de uma revolução nesse ano, sem dúvida influenciada pela Perestroika de Gorbachev e pela deterioração das condições de vida dos romenos dos anos 80. De realçar que as consequências dessa estratégia económica e orçamental ainda estão à vista, mais de uma geração após a sua implementação.

E nós temos bem presentes as consequências do “reinado” de Salazar, que também equilibrou as contas públicas...

Desesperadamente procurando por vida além do défice...

Claro que a estratégia orçamental de Ceausescu ou de Salazar não é comparável à do Governo português da actualidade nem à da Alemanha e de outros países do norte da Europa. O objectivo desta reductio ad absurdum é ilustrar que o défice ou o excedente orçamental não é em si um objectivo e interessa muito saber se não está a ser obtido à custa do sacrifício das famílias e do investimento no desenvolvimento futuro do país.

Certamente a “vida além do défice”, bem como um sentido de rumo e de destino comum, serão muito mais importantes.

P.S.: A bolsa, sempre a bolsa!

O presidente da Reserva Federal alterou muito ligeiramente a linguagem utilizada na intervenção que fez no dia 28 de Novembro no Economic Club of New York, passando a sugerir que o ciclo de subidas da taxa de juro de referência estará a chegar ao fim e que a política monetária não se tornará muito mais restritiva. Foi o suficiente para estabilizar e fazer subir o principal índice dos mercados bolsistas em cerca de 5%. E, no domingo de manhã, a 2 de Dezembro, soube-se que o Presidente chinês e o Presidente dos EUA acordaram em Buenos Aires, durante um jantar na véspera, à margem da reunião do G20, uma trégua de 90 dias na aplicação de novas tarifas aduaneiras, no âmbito da guerra comercial entre os respectivos países.

As duas medidas sinalizam um elevado grau de preocupação do Governo dos EUA com a queda dos índices bolsistas, numa coreografia cuidadosamente preparada, mas insuficientemente subtil, para fazer a bolsa voltar novamente a subir. Pânico no Titanic?

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