Este taxi driver não é fascista nem tem armas, só música e humildade

Não tem uma capa secreta para vestir no fim do dia, mas o etíope Hailu Mergia, o super-músico a quem os percalços da vida afastaram do estrelato, também tem duas vidas. E a da música acaba de ganhar novo e merecido fôlego.

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“Whores, skunk pussies, buggers, queens, fairies, dopers, junkiessick, venal. Someday a real rain will come and wash all this scum off the streets”. É uma das mais famosas tiradas na carreira de Robert De Niro, um dos monólogos que o imortalizaram no Taxi Driver de Martin Scorsese —  infelizmente, e como já não é possível de disfarçar, palavras de eco sinistro, crescente, no mundo actual, contrariamente ao que quiseram acreditar as gerações nascidas no pós-guerra, formadas no mito de um certo progressismo tido como irreversível (os direitos humanos, as conquistas sociais, os avanços civilizacionais). É de 76 o filme de Scorsese; curiosamente, uma das “gloriosas” décadas do crescimento económico no mundo ocidental, a mesma durante a qual, no outro hemisfério, a leste de África, Hailu Mergia gravava, ladeado pelos The Walias (espécie de The Funk Brothers “à etíope”, no sentido em que, tal como a banda in-house da Motown, gravou e tocou para numerosas estrelas da música popular local), Tche Belew (1977), o seu primeiro LP (exclusivamente instrumental). Uma década, outrossim, em que a Etiópia, no mesmíssimo ano em que os cravos desfeiteavam o fascismo em Portugal, conhecia uma revolução que, depondo o imperador Haile Selassie I, levou ao poder o infame regime Derg (de linhagem comunista e em funções até 87), cuja censura sobre o mundo artístico foi sentido por Hailu Mergia na pele, ele que já teve por cá em duas discretas passagens (em 2013, no Music Box, e este ano em Serralves e na ZDB). Antes da revolução, conta ao ípsilon, a Etiópia “era um país livre, agradável, não havia caos. Foi um tempo de paz”. Com o governo comunista, “a indústria musical tinha que seguir a ideologia do regime, fazer o que eles mandavam. Eles verificavam as letras, as ‘mensagens’, e, em função disso, permitiam-te ou não cantar. No nosso caso, como actuávamos no Hotel Hilton, não sentíamos pressão do governo, porque estávamos a tocar música internacional para turistas. Mas houve uma vez, nas gravações do Tche Belew, em que tivemos problemas com uma canção que tinha uma parte com um coro e uma letra. Antes de o álbum ser lançado, levámos à censura para obter permissão e eles ordenaram que eu retirasse o coro, porque a letra não encaixava na linha do governo”. No Hilton de uma Addis Ababa que, sede de uma série de organizações internacionais e representações diplomáticas, sempre foi uma cosmopolita urbe, tocavam, continua Hailu, “para um público misto, brancos e negros, sobretudo turístico. Tocávamos tudo, desde standards de jazz durante o jantar, blues, mas também soul e funk para dançar”. Por esta altura, o seu grande herói era Jimmy Smith, de quem, entre outros organistas da música negra americana que ouvia abundantemente, gostava pelo modo como tocava o instrumento, sobretudo o por si popularizado Hammond B-3 (órgão eléctrico).

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Hailu Mergia, taxista nos “tempos ocupados” e músico nos livres (ou ao contrário, se percebermos como é a música que lhe ocupa o espírito), anda sempre com um teclado na mala para ir testando novas composições entre cada corrida DR

Menos Taxi Driver, mais Paterson

Mas voltando à estrada, graças a Deus que, ontem como hoje, por cada taxista amargo um outro amável sempre existe, por um frustrado e perto do burn out (classista, psicológico, existencial) se encontra um bondoso e sensato que nos leva ao destino. Ora, se, hoje, o leitor vivesse na América, em Washington D.C., talvez tivesse a sorte de apanhar um taxista desta última estirpe, com um pequeno extra: música, muita música, quiçá, num dia de especial boa-disposição, tocada ali mesmo, no assento de condutor. Não é brincadeira de ocasião: Hailu Mergia, taxista nos “tempos ocupados” e músico nos livres (ou ao contrário, se percebermos como é a música que lhe ocupa o espírito), anda sempre com um teclado portátil na mala para ir testando novas composições entre cada corrida. Momento, então, em que Hailu deixa de ser Taxi Driver e vira Paterson, a personagem do filme com o mesmo nome de Jim Jarmusch, plácido e sensível motorista de autocarro cujo amor maior, depois da mulher, são os versos que vai imaginando enquanto conduz e escrevendo quando interrompe a marcha.

“Os etíopes da minha geração, quando vêem o meu nome na licença do táxi, sabem logo quem  sou! Os mais novos conhecem a minha música mas não conhecem a minha cara. Alguns até pensam que já não estou vivo! Quando vêem o nome, perguntam: ‘O senhor é mesmo o Hailu Mergia?!’ E quando lhes digo que sim, pedem-me para tocar”.

Onde, portanto, De Niro desejava um dilúvio regenerador, uma “faxina” como a que um abjecto fascista proclamou há semanas no Brasil, Hailu, nascido no vilarejo rural de Debre Birhan (onde, ainda menino,  pastava o gado da família), educado para a música no exército em Addis Ababa e emigrado para os EUA nos anos 80 (aproveitando, embora de forma não planeada, como faz questão de frisar, uma tour que o levou, a ele aos The Walias, a tocar pela primeira fez fora da Etiópia), traz consigo, pelo contrário, a total conspurcação das ruas: cores, países, texturas, línguas, sensibilidades, sons, culturas distintas. É desta esterqueira (também conhecida por amor, fraternidade, humanismo) que precisaremos nos próximos tempos: mistura, mestiçagem, promiscuidade, contra os que querem asseio, salubridade, “pureza”.

Sujemo-nos, pois então: “You talkin’ to me?”, pergunta-nos o leitor e respondemos-lhe afirmativamente, da mesma forma que o idiossincrático jazz de Hailu nos interpela, nos desafia a irmos de encontro às suas origens. As mesmas de Mulatu Astatke, lenda viva da música etíope —  a ele se devendo o carimbo de ethio-jazz, que traduz a fusão do jazz americano com os instrumentos e sons etíopes tradicionais —  que há décadas vem fascinando o Ocidente (e que virá, em Janeiro do próximo ano, tocar a Lisboa e Braga).

Sobre a redescoberta da sua obra, Hailu confessa ter mixed feelings: “É estranho e, ao mesmo tempo, bom... Antes, tocava para só etíopes, agora toco para pessoas de todo o lado. É realmente surpreendente para mim, este coming back na minha vida…Embora eu sempre tenha sentido que ele um dia iria acontecer, e por isso é que continuei a tocar no meu táxi… Só não sabia quando aconteceria”.

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Lala Belu é um disco de um veterano de 80 anos que parece ter saído das mãos de um miúdo endiabrado

Aconteceu através da Awesome Tapes From Africa, selo independente criado pelo americano Brian Shimkovitz, que um dia foi com uma bolsa para o Gana e voltou de lá apaixonado pela música popular africana mais obscura (tendo ainda recentemente re-editado Obaa Sima, LP de 94 de Ata Kak, ganês que, em Outubro, esteve no Music Box, em Lisboa). É ele quem, depois de apanhar ao acaso uma cassete de Hailu, lhe tem reeditado os discos nos EUA e na Europa nos últimos anos. Lala Belu, o novo álbum de Hailu, só por convenção rotulável exclusivamente de “jazz”, é uma peça profundamente fresca, inclusivamente mais desalinhada e extravagante do que os trabalhos dessa nova e virtuosa geração de músicos de jazz: Kamasi Washington, Thundercat ou Robert Glasper, na América; mas, também, a nova cena jazz londrina capitaneada por Kamaal Williams (fundador da agregadora Black Focus Records) Yussef Dayes, Camilla George ou Joe Armon-Jones (antes da emergência de todos estes nomes, e talvez porque o hype na altura não era o mesmo, já lá morava Soweto Kinch). Uma geração —  que Hailu nos confessa não conhecer pelo nome, embora insista que aquilo em que mais emprega o tempo é a ouvir música (“fusion jazz e blues, sobretudo”) —  que tem feito descolar o jazz de discussões confinadas a músicos e especialistas e a intrometer-se no mapa da música popular mais mainstream, circunstância também potenciada pela sua re-aproximação, depois de algumas experiências de fusão dos anos 90, ao hip-hop, ao funk e à electrónica de filiação bass (UK garage, grime, broken beat), algo de que um disco como To Pimp A Butterfly (2015), de Kendrick Lamar, é paradigmático exemplo.

O folk etíope, o jazz e a electrónica entram num bar

Lala Belu, dizíamos, é um disco de um veterano que parece ter saído das mãos de um miúdo endiabrado, desde logo no modo como dialoga com a electrónica, mais concretamente com aquela virada para as pistas de dança, como o drum’n’bass ou o tecno. Composto por três recriações do cancioneiro etíope tradicional (Tizita, Gum Gum e Anchi Hoye Lene) e outros três inéditos, é um objecto para o qual Hailu quis fazer algo novo, diferente dos seus (escassos) discos anteriores, para o efeito tendo formado um trio novo de raiz (Mike Majkowski no contrabaixo, Tony Buck sentado à bateria, Hailu com o acordeão e os teclados).

“A ideia de fazer algo diferente partiu da experiência de ter um trio, que nunca tive antes. Um trio com um contrabaixo e uma bateria para poder experimentar um novo tipo de improvisação. Nos outros álbuns, estava concentrado na melodia e pouco na improvisação. Desta vez, pensei: ‘Porque não ter mais improvisação, além das melodias?’. Este álbum é mais dirigido para a improvisação, e com novos tipos de ritmos: bossa nova, funk, swing, padrões etíopes tradicionais”.

Pouco tempo depois de 1985, ano do seu clássico Hailu Mergia & His Classical Instrument: Shemonmuanaye (gravado já nos EUA) e até ao corrente ano, Hailu afastou-se da música, deixando de editar e de tocar ao vivo, por razões pessoais que prefere não desenvolver.

“Quando cheguei aos EUA, decidi ficar cinco ou seis anos e depois voltar à Etiópia, mas, infelizmente, não foi isso que aconteceu. Nos primeiros tempos, foi confuso… Tocava em clubes e restaurantes [com a Zula Band, que formou com os outros dois elementos dos Walia que também não apanharam o avião de volta]. Depois deixei de o fazer e passei a trabalhar noutras coisas, em discotecas, no táxi… Quando não me sinto bem a fazer uma coisa, não a faço. Sou esse tipo de pessoa, não consigo explicar melhor”, diz-nos de modo reservado, tristonho mas resoluto.

De outro prisma, porém, Lala Belu prossegue, ou expande, mais de 30 anos depois, o aventuroso caminho aberto por Shemonmuanaye, que Hailu então gravou inteiramente sozinho num pequeno estúdio, enquanto descobria, com olhos de menino, as maravilhas “modernas”: o Rhodes, a drum machine, o sintetizador Minimoog. “Eu estava a tentar obter sons diferentes com o Minimoog. Quando descobri aqueles sons fantásticos que soavam a linhas de baixo, e que são diferentes das linhas de baixo convencionais, fiquei impressionado! Quando tocava órgão sintetizador, nunca conseguia sacar aqueles sons, e foram esses que eu depois usei para improvisar. Percebi aí como o Minimoog era diferente de todos os outros sintetizadores”. Ao mesmo tempo que, em sentido oposto, redescobria o acordeão, seu instrumento de infância e então caído em desuso entre os músicos etíopes (nos anos 60, com a chegada do órgão, o acordeão passou, diz-nos Hailu, para terceiro plano, só vindo a ser recuperado já em oitentas) —  e que agora se volta novamente a ouvir, pois claro, no novo disco. Shemonmuanaye era, pois, um disco que juntava dois mundos, ou melhor, vários “pares” de mundos: o Sul e o Norte, África e a América, a música popular etíope e o jazz dos descendentes dos escravos, o tradicional e o moderno, o artesanal e o tecnológico. Nesta perspectiva, Lala Belu é uma peça eminentemente moderna, se bem que a primeira faixa, Tizita (termo amárico que, significando memória ou nostalgia, corresponde também, mais do que a uma espécie de hino popular etíope, a um género musical ou modo de tocar tradicionais, e com o qual os musicólogos ocidentais têm comparado os blues, os mesmos que dão os tons místicos, e “térmicos”, à capa do disco), abra no registo mais folk de todo o disco. Maravilhosa composição da qual, já só muito tempo depois de a termos escutado uma e outra vez, nos apercebemos dos seus 10 minutos de duração, segmentados em três secções rítmicas distintas, de velocidade crescente e melodia progressivamente desarranjada, desembocando num free jazz protagonizado pelos solos de contrabaixo e teclado. Surpresa que já diz muito da sua essência —  600 segundos que não damos a passar, tal a forma como somos enfeitiçados pelas frases do acordeão e do órgão (e, pontualmente, dos sintetizadores), ou, melhor dizendo, pelos versos, estrofes, poemas que eles redigem, cheios de graça, no ar, evocando, sem angústia, a passagem do tempo, de como tudo é breve nesta caminhada a que se convencionou chamar vida (na secção de comentários do YouTube, um utilizador escreveu apenas, com notável e poético poder de síntese, “life”; outro, mais prolixo, “Best ten minutes of my life until now”).

É a mesma sensação de canção-olhar bigger than life que emerge de Yekfir Engurguro, momento unicamente ao piano, elegíaco, que encerra o disco. Partida sem tristeza, mais mística do que lutuosa (mais oriental do que ocidental, também, possivelmente), como se de um adeus ao jeito hindu se tratasse —  uma partida de branco vestida, celebrando, silenciosa mas festivamente, a passagem para um outro tempo-espaço.

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O eco folk, sobretudo imprimido pelo órgão, volta a fazer-se sentir em Lala Belu, raro momento em que se ouve a voz a um músico que sempre privilegiou a instrumentação (embora Hailu nos revele que, nos anos 70, chegou a cantar em clubes nocturnos da capital etíope), depois se calando para a improvisação a meias entre o teclado e o synth. O mesmo órgão protagonista de Gum Gum, onde uma certa derivação caribenha (mais concretamente do dub jamaicano) contrasta, “geograficamente”, com a percussão afrobeat —  embora, e esticando o mappa mundi, a entrada do teclado e do sintetizador leve a faixa, afinal, para um registo familiar à bossa nova (lembrando, os últimos trabalhos de Marcos Valle ou dos Azymuth).

O namoro com a electrónica a que acima aludimos assomará com Addis Nat e Anchi Hoye Lene, a primeira delas devendo ao órgão e ao acordeão a hipnótica linha melódica que, de par com a bateria vertiginosa, sempre a partir pedra (é, provavelmente, a mais rockeira canção jamais feita sem uma única guitarra), atiram a canção de um músico jazz etíope para uma rave num qualquer undergroundzíssimo club de drum ‘n’ bass britânico.

Quando lhe perguntamos se esta nossa impressão lhe causa estranheza, Hailu, depois de hesitar, retorque: “Não é estranho. Eu estou a tentar criar sons novos, a minha ideia é ter diferentes tipos de ritmos, de improvisação, de instrumentos acústicos. Quando ouvimos música, temos que ser capazes de ouvir diferentes tipos de sons. Eu quero fazer um novo tipo de som!”.

Se atrás utilizámos o termo “hipnótico” (o acordeão e os teclados ganham, nas mãos de Hailu, foros “das arábias”, qual encantador de serpentes) e evitamos, como tantas vezes se lê a propósito destas enleantes modulações, outros como “psicadélico” ou “futurista”, não é por acaso: em rigor, sempre nos pareceu que esse tipo de adjectivação denuncia um olhar (ou um ouvido) limitado e (et pour cause) ocidentalmente-centrado, incapaz de discernir que o psicadelismo deliberado de Hendrix, dos Doors ou dos Beach Boys nada tem que ver com sonoridades que são, antes de tudo, locais, tradicionais, pertencentes um determinado país (e longínquo em muitos casos, logo “exótico”), em nada comunicando, portanto, com a cultura e o zeitgeist do mundo ocidental (as drogas, o movimento hippie e contra-culturas associadas, o Maio 68 e demais revoltas políticas estudantis) que estão na génese desse mesmo psicadelismo (a entrar por campos menos terrenos, sempre diríamos, então, que o som de Hailu carregará, antes de tudo, uma forte energia mística).

E o que pensa, afinal, o principal “culpado” desta divergência sobre tudo isto? “Tudo o que faço é em função das melodias do acordeão. Quando as oiço, procuro linhas ou formas de improvisação que encaixem com elas. Não sei se é ‘psicadélico’ ou qualquer outra coisa que lhe chamem, mas é assim que crio. É tudo o que posso dizer!”.

Insistimos: mas quando escuta a sua própria música, que tipo de emoções ou sensações o acometem? “Sempre que componho melodias, elas têm que me tocar interiormente. Têm que me lembrar a idade que tinha quando as compus, o que estava a fazer, como era a minha vida nessa altura… As melodias estão sempre conectadas comigo mesmo. É quando chego a casa e me sinto em baixo, blue, solitário ou feliz que crio melodias. Quando oiço músicas minhas antigas, tenho que me sentir feliz ao ouvi-los, ter uma memória da minha vida, tenho que amar as melodias que faço”. Menos hipnotizante e mais nervosa, intensamente circular (elemento característico da electrónica de dança), noir mesmo, Anchi Hoye Lene começa com o contrabaixo no papel principal, cedendo depois o protagonismo às teclas muito acid —  de acid jazz, sim, mas também do químico que engalana essas mesmas raves onde esta faixa também podia tocar — , as quais, por sua vez, se verão depois ofuscadas, já se depreendeu, pelo omnipresente acordeão.

É a mesma omnipresença, afinal, da música na vida de Hailu: aos 80 anos, o super-músico de vida dupla está aí para as curvas, só nos restando esperar que o seu regresso não tenha vindo demasiado tarde, ou, dizendo-o de outro modo, que nova e entusiasmante música ainda esteja para vir.

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