Os resistentes do tempo em que não se sobrevivia ao VIH

Nos anos 90, saíram dos consultórios médicos com sentenças de morte. O diagnóstico: sida. Prepararam-se para morrer. Mas sobrevivem. Este sábado assinala-se o Dia Mundial de Luta Contra a Sida.

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Miguel Feraso Cabral

Uma pessoa saudável tem entre 500 e 1500 CD4 por milímetro cúbico de sangue — as células do sistema imunitário que são o alvo principal do VIH. Às 350 já se considera que a infecção está num estado avançado e há quem morra antes de ter menos de 50. Luís Mendão tinha duas CD4 quando, em meados dos anos 90, soube que estava infectado com o vírus. Tinha um pequeno livro que ilustrava o estado da infecção através da contagem destas células. “Olhando para ali sabia que não tinha uma esperança de vida por aí além.” Tinha 38 anos. “Pensei que não ia chegar aos 40, não ia ver a Expo, nem o ano 2000.” Mas viu. Passou-se uma década e mais outra, e já vai a caminho da terceira. Sobreviveu.

Há dificuldade em saber quantas pessoas foram infectadas nas primeiras décadas da epidemia e ainda estão vivas. O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) estima que 4000 pessoas que foram diagnosticadas entre 1983 e 1996 estão hoje em seguimento médico. Das que souberam do seu estado serológico ente 1997 e 2006, 17 mil são acompanhadas, e daquelas que receberam o diagnóstico nos últimos dez anos, há 14 mil em seguimento. Uma coisa é certa: “o intervalo de tempo entre o diagnóstico de infecção por VIH e a morte tem vindo a aumentar ao longo das três décadas da epidemia”, lê-se no mais recente relatório do INSA sobre o VIH/sida. Este sábado celebra-se o Dia Mundial da Luta Contra a Sida. 

Luís Mendão, hoje presidente do Grupo de Activistas em Tratamentos (GAT), faz parte do universo dos sobreviventes. Soube do diagnóstico no final do Verão de 1996, depois de ter sido internado. “Sentia-me muito doente”, lembra. Apesar da companhia de uma amiga holandesa, de férias na sua casa em Sesimbra (e, por sorte, enfermeira), com quem gostava de sair à noite, quase nem tinha forças para se arrastar da cadeira para o sofá. A fraqueza extrema foi suficiente para que se mandasse Luís fazer exames a tudo. Era urgente. Já no Hospital Santa Maria, em Lisboa, ouvia perguntas “estranhas” dos médicos. E questionava-se: “Mas que raio de doença terei?”

O mensageiro da notícia foi o médico mais novo da equipa. “Ainda não temos a certeza absoluta, mas pode mesmo ser sida”, ter-lhe-á dito. Para Luís, “fez-se luz”. Pensou: “É isso. É que não há dúvida. É mesmo isso.”

Depois do diagnóstico e ainda no hospital, Luís quis avisar todos aqueles com quem tinha tido contacto e que podiam também estar infectados. Foi a uma cabine telefónica e fez oito chamadas. Uma por cada uma das pessoas. Ninguém tinha contraído o vírus. Depois, definiu um objectivo: deixar todos os seus assuntos tratados antes de morrer. Esperava que isso acontecesse até ao final do Inverno de 1997.

Diogo e Maria (nomes fictícios) também se prepararam para esse destino inevitável de quem era infectado. Maria soube do diagnóstico quando estava na Alemanha. “You have AIDS” (Você tem sida), disse-lhe a médica em inglês. Assim, “sem mais nem menos”. Era 1993 e tinha 22 anos. “Eu nem sabia bem o que era isto. Sabia que era uma doença muito má e que as pessoas morriam logo. Pensava que ia morrer passados dois dias”, recorda. Isso não aconteceu e um ano depois regressou a Portugal. Voltou a consumir drogas injectáveis (foi assim que se infectou anos antes). Em 1994, voltou ao hospital e uma médica portuguesa deu-lhe dois anos de vida. “Nunca se deve dizer isso. A pessoa fica com a perspectiva de que vai morrer e que não tem nada a perder. Não vale a pena ir trabalhar, estudar. Deixei de ter ambições.”

O caso de Diogo foi semelhante. Soube que estava infectado no início dos anos 90, fora de Portugal. Também era toxicodependente e terá sido assim que se infectou. Se bem que é difícil saber, porque não partilhava a seringa. Além disso, “quem é que na altura usava preservativo?”. Quando recebeu a notícia “sabia que a sida era incurável”. Fez uma opção: “Já que mais cedo ou mais tarde ia morrer, optei por consumir, tornar-me egoísta e perder o contacto com a minha namorada e amigos, assim não tinha de contar o que se passava comigo.”

Outro caso é o de Manuel (nome fictício). Desconfiava que estava infectado desde 1997, porque lhe contaram que uma pessoa com quem tinha partilhado seringas era seropositiva, mas só se testou em 1998. “Foi o pior ano da minha vida”, lembra. “Olhava para as outras pessoas e achava que elas iam viver e eu ia morrer.” Quando finalmente soube o diagnóstico “foi um alívio”.

Revolução terapêutica

Antes de ser infectado, Luís Mendão considerava que tinha tido uma vida “essencialmente segura”. Sabia, no entanto, a história do vírus e da doença e estava consciente de alguns comportamentos que tinha tido — sobretudo relações de risco com homens e mulheres, mas também uso de drogas injectáveis. Ao olhar para trás, foi capaz de identificar um momento, em 1985, quando tinha 27 anos, em que terá sido infectado. Viveu 11 anos com o vírus, mas sem um diagnóstico. Desde o início da década de 90 que ia “aos serviços de saúde privados e públicos, com queixas que eram relativamente estranhas para alguém que tinha 30 e tal anos, mas os médicos nunca propuseram o teste”.

Um ano depois de saber que estava infectado já tinha carga viral indetectável. Confrontou o médico que o seguia com esta longevidade mais prolongada do que o planeado. “Eu tinha imaginado que morria nesse ano.” Tinha-se reformado, não tinha dinheiro e não sabia se morria dali a um mês ou um ano depois. O médico também não. “Vocês são os primeiros doentes que começaram o tratamento com regimes realmente eficazes. Vamos aprender convosco. Não há previsão”, ter-lhe-á dito.

Henrique Barros, médico e antigo coordenador nacional para a Infecção VIH/sida, diz que a partir de 2000 se passou de uma doença em que o diagnóstico era “uma sentença de morte, para uma infecção de gestão crónica”. Muito do caminho percorrido para encontrar medicação adequada foi feito graças à “pressão feita pelos doentes”.

De resto, “foi-se aprendendo fazendo”. Descobria-se uma resistência, tentava-se resolvê-la. “A certa altura, os doentes tomavam 40 a 50 comprimidos por dia”, lembra. Em 2005, a generalização da terapêutica tripla foi um marco. Hoje, a dose diária oscila entre um e três comprimidos.

O estigma “ainda existe”

Muito se evoluiu desde 1996. “Os medicamentos são melhores. Incrivelmente melhores. Em eficácia, em segurança, e com muito poucos efeitos adversos. Aí houve uma revolução. Também estamos melhor no que diz respeito ao acesso.” Muito se fez nestas três décadas. “Vi o VIH passar de uma coisa mortal, rápida, para uma condição em que é possível ter uma esperança de vida normal. Mas tenho sempre a sensação que, tendo feito algumas coisas tão importantes como as que fizemos, era possível fazer muito melhor e mais depressa com o mesmo dinheiro”, nota o activista Luís Mendão. Porém, “a discriminação e o estigma em Portugal continuam graves”.

Há o “medo atávico” dos outros em relação a quem tem uma doença transmissível. Mas o que é “mais terrível”, e algo com que as associações se têm confrontado, “é a discriminação dentro dos serviços de saúde”. Algo difícil de compreender quando “vem de quem está a lidar com as pessoas e devia ter acesso à melhor informação”, critica Luís Mendão.

No início da infecção, Maria também diz ter testemunhado comportamentos "horríveis" por parte da comunidade hospitalar em relação à doença. Nos anos 90 foi operada a uma infecção e diz que foi colocada num quarto sozinha. Na porta, um papel que anunciava que estava infectada com VIH. “Agora já não é assim. É completamente diferente. Já nem usam luvas para tocar na pele.”

O médico Henrique Barros, que hoje se dedica à investigação na área do VIH/sida, era interno na altura em que os primeiros casos chegavam aos hospitais. Lembra-se de ainda lhe chamarem gay bowel syndrome (síndrome do intestino gay) e não tem dúvidas de que as coisas estão diferentes. No início, “as pessoas tinham medo” da infecção. Algo que não se justificava porque “ser médico não é uma profissão de risco”. O problema foi “particularmente dramático” no campo da saúde oral. Mas nem era só medo. “Era também o estigma associado às formas de transmissão” — especialmente o sexo e as drogas. Hoje, a forma de encarar a doença pela comunidade médica reflecte as "melhorias reais na sociedade”.

E fora do hospital? Mesmo assim, o consenso é o de que o estigma persiste. “Não conheço nenhum seropositivo que diga que o é, a não ser às pessoas à sua volta”, nota Manuel. “As pessoas não têm ideia de quanta discriminação ainda existe. Não tanta como há alguns anos, mas ainda existe.”

 

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