Democracia e Constituição em Espanha

Poucas constituições europeias como a espanhola mostram mais sinais de dessintonia com a sociedade.

Os 40 anos da Constituição espanhola estão a comemorar-se em tempos difíceis: as dúvidas legítimas sobre o respeito dos direitos humanos e as feridas abertas pelo processo de desapossamento de direitos e de transferência de riqueza dos pobres para os ricos, especialmente acentuado a partir de 2011 com o governo Rajoy, reabriram o debate constitucional.

É muito curioso o paralelo do percurso histórico das constituições ibéricas de 1976 e 1978. Ambas foram aprovadas por amplíssima maioria dos deputados (93% dos portugueses, 95% dos espanhóis); em ambos os casos foi a direita mais próxima da herança das duas ditaduras que as rejeitaram (o CDS em Portugal, a maioria da Aliança Popular, de Fraga Iribarne, em Espanha). Que a contestação do consenso constitucional se tenha feito, e logo desde 1976, pela direita, em Portugal, e pela esquerda, em Espanha, especialmente desde os anos 90, é um evidente produto de dois modelos muito distintos de democratização. A direita portuguesa rejeitou sempre a Revolução e descreve, ainda hoje, a Constituição como resultado da “loucura revolucionária”. É, aliás, por isso mesmo que ela faz frequentemente o elogio da transição espanhola por contraposição à Revolução portuguesa, descrevendo-a como o processo politicamente controlado e pacífico que ela nunca foi – pelo contrário: quase 600 espanhóis foram mortos por motivos políticos durante a transição democrática (e um terço deles às mãos de militares, polícias e esquadrões da morte), contra menos de 20 vítimas de violência política em Portugal, quase todas às mãos da extrema-direita bombista dos anos de 1975-76.

Claro que ambos os processos constituintes foram condicionados (como em qualquer país) pelo contexto político em que se desenvolveu: a pressão social de uma Revolução em curso em Portugal, emancipadora como nenhum outro processo histórico o fora em Portugal; a capacidade que o Estado autoritário franquista nunca chegou a perder para impor limites muito estreitos a vários dos capítulos estruturais da Constituição e, consequentemente, ao desenho da democracia em construção. Iniciado um processo de negociação de cima para baixo, entre os segmentos do Franquismo que perceberam não ser possível continuar a conter a vaga de contestação social e política sem ter de prescindir da natureza ditatorial do regime, e as forças mais representativas da oposição, que, contudo, apesar da força dos movimentos sociais, se viram obrigadas a negociar com o Estado numa correlação de forças que lhes foi sempre desfavorável, a Constituição de 1978 contém três tabus que nela foram impostos antes ainda de realizadas as eleições de 1977 e começado o debate constituinte.

Como diz o constitucionalista Javier Pérez Royo, “a Monarquia é a marca mais inequívoca do regime de Franco na nossa fórmula de governo”. Enquanto tal, ela “não é antidemocrática, é simplesmente ademocrática, mas em Espanha foi restaurada antidemocraticamente” pelo próprio Franco e herdada tal qual pelo regime democrático. Atribuir-se às Forças Armadas a missão de “defender [a] integridade territorial e o ordenamento constitucional” teve um significado tutelar evidente na transição, que ressurge hoje no contexto da discussão do direito de autodeterminação. A imposição de um Parlamento bicameral, eleito por um sistema que, no Congresso e sobretudo no Senado, sobrerrepresenta as regiões mais conservadoras e mais favoráveis à conceção nacionalista do Estado espanhol, permite, como se verificou nestes 40 anos, o bloqueio de qualquer processo de reforma constitucional que conduza a uma solução na qual se sintam verdadeiramente respeitados os povos de Espanha. Por outro lado, prova de uma laicidade condicionada do Estado, a Igreja Católica, outro dos pilares fundamentais do Estado autoritário franquista, conseguiu que se lhe fizesse referência expressa na Constituição, designadamente no terreno do direito à educação, reconhecendo-se-lhe um estatuto de privilégio.

No contexto de crise dos sistemas democráticos, que os vem minando desde, pelo menos, o início deste século, poucas constituições europeias como a espanhola mostram mais sinais de dessintonia com a sociedade. A abertura de um processo constituinte que reforçasse mecanismos eficazes de respeito da pluralidade política e nacional, e que permitisse voltar a ouvir a voz dos cidadãos na construção do sistema democrático em que querem viver, poderia ser uma grande oportunidade para contrariar este regresso dos autoritarismos que nos pode hipotecar a vida a todos nos próximos anos.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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