Num reduto no Guadiana resiste a única comunidade na Península Ibérica de uns pequenos narcisos

Uma plantinha com apenas dez centímetros, que floresce no Outono, de cor amarela, resiste na Ponte da Ajuda sobre o Guadiana e na aldeia de Montes Juntos no concelho do Alandroal.

Foto
Ponte da Ajuda Nuno Ferreira Santos

À distância, o Narcissus cavanillesii, de cor amarela, confunde-se com os malmequeres com a mesma tonalidade. Só um olhar atento é que descobre que se trata de uma espécie de narciso, com pouco mais de dez centímetros de altura, espécie endémica que está circunscrita ao Sudoeste da Península Ibérica e ao Norte de África. Mas a ameaça paira.

É entre as ruínas do tabuleiro da ponte-fortaleza que ligava Elvas a Olivença no século XVII, e que foi destruída durante a Guerra de Sucessão Espanhola, em 1709, que resiste o maior núcleo de narcisos da Península Ibérica, com cerca de 300 metros quadrados, e outros três mais pequenos que, juntos, cobrem aproximadamente seis metros quadrados.

A equipa de Antónia Roselló, David Draper e Isabel Marques, biólogos do Jardim Botânico de Lisboa, contratada no ano 2000 pela Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA) para identificar as populações do pequeno narciso, calculou que a ponte acolhia à volta de 11.000 Narcissus cavanillesii.

Era na Ponte da Ajuda que se situava no final dos anos 90 o único povoamento conhecido do pequeno narciso. Mas quando a equipa do Jardim Botânico efectuou, naquele período, a Monitorização de Plantas Prioritárias descobriu outro povoamento de Narcissus cavanillesii perto da aldeia de Montes Juntos, no concelho do Alandroal, cerca de 30 quilómetros para sul da ponte. O número de plantas rondava as 1200.

Dada a sua localização se encontrar à cota 127 acima do nível do mar, com o fecho das comportas de Alqueva, em 2002, os núcleos de narcisos de Montes Juntos ficariam submersos.  Se não fossem realizadas acções de conservação, estaria comprometida a sobrevivência da espécie em Portugal. Também os núcleos de Narcissus cavanillesii concentrados na Ponte da Ajuda poderiam vir a ser afectados pelo enchimento pleno de Alqueva à cota 152 metros acima do nível do mar, embora de maneira distinta. Com efeito, e apesar de o tabuleiro da estrutura se encontrar a uma cota aproximada de 153/155 metros, “haveria uma alteração do nível freático pela excessiva proximidade da albufeira, o que poderia conduzir a uma maior pressão antrópica”, anteviam os investigadores.

Mais delicada era, contudo, a salvaguarda da população de narcisos de Montes Juntos. A solução preconizada pelos biólogos passava pela translocação das plantas para uma cota superior que as colocasse fora do alcance das águas. Tratava-se de uma “operação de resgate, sem precedentes na Península Ibérica”, mas essencial para a conservação da espécie em Portugal, concluía, em 2001, a equipa de biólogos.

O povoamento da aldeia de Montes Juntos era “o único caso, de entre todo o património natural presente na região”, em que a ausência de acções de conservação poderia comprometer a sobrevivência da espécie, que corria o risco de ficar circunscrita aos núcleos nas ruínas da ponte, admitiam os biólogos. Era “escasso o conhecimento” que existia sobre a biologia da espécie, reconheceram os investigadores, no dia 15 de Setembro de 2001, quando se processou, marcada pela incógnita, a transferência das plantas que, na sua grande maioria, se encontravam entre cavidades e fissuras das rochas de xisto.

O grau de exigência que era imposto à translocação das plantas, por se tratar de uma espécie que tem desde 2001 o estatuto de “criticamente ameaçada” que a colocava na lista vermelha da UICN, e nos anexos II e IV da directiva Habitat, fazia antever uma operação delicada, como foi, e com imprevisíveis resultados. Mesmo assim, a intervenção acabaria por ganhar uma menção honrosa, no ano seguinte, do Prémio Ford para a Conservação e Ambiente.

Decorridos que estão 17 anos sobre a operação de salvaguarda do Narcissus cavanillesii, o PÚBLICO deslocou-se, em meados de Novembro, à Ponte da Ajuda e deparou-se com um intenso manto amarelo que cobria o tabuleiro da margem norte da ponte que, assim, se mantinha como o reduto principal desta rara espécie.

A EDIA, que continua a financiar o trabalho de monitorização dos núcleos de Narcissus cavanillesii executado pela equipa de biólogos do Jardim Botânico, confirma que “a população da Ponte da Ajuda continua a ser a maior população da Península Ibérica”. Mas chama a atenção para o facto de a sua localização “permitir que as pessoas tomem contacto com a espécie, deixando-a vulnerável à recolha ilegal e eventualmente pisoteio”. Aliás, a área envolvente à ponte “também tinha indivíduos, [mas]com o decorrer do tempo estes têm desaparecido”, alerta a EDIA, confirmando-se as reservas colocadas pela equipa de biólogos em 2001.

Já os núcleos da planta de Montes Juntos “registam uma evolução da sua população para fora dos limites da translocação”, comprovando-se que o processo de translocação “foi bem sucedido”, reconhece a EDIA.

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