Do Tragabolas ao coscorão

Sinto falta dos meus tios-avós, tal como sinto falta dos meus avós. Os avós não precisam de fazer grande coisa para tornar os natais especiais, basta que andem ali pela casa, quais figurantes.

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Acho que uma das formas de percebermos que atingimos a idade adulta é quando o grande interesse do Natal migra das prendas para a comida. “Sim, era mesmo este livro que eu queria, mas onde é que estão as filhoses?”

Lembro-me de quando era pequeno e salivava a olhar para os embrulhos de Natal que ainda não podia abrir. A minha única grande preocupação natalícia era saber a hora exacta a que se abririam as prendas. Por vezes circulavam rumores na noite do dia 24 de que a entrega seria antecipada, os avós queriam ir para casa, estavam cansados, os meus pais ficavam preocupados e eu pensava: “Boa, já não vamos esperar pela meia-noite! Mas isso quer dizer o quê, onze, dez e meia? Por favor, sejam precisos!” A falta de rigor noticioso dos adultos exasperava-me.

Com o tempo, a excitação de espreitar os embrulhos de Natal deu lugar à excitação de espreitar coisas a assar no forno. Hoje em dia compreendo melhor as motivações do meu tio-avô, visita assídua dos natais, que seguia uma dieta rigorosa na Consoada. Comia a canja e saltava directamente para as sobremesas sem passar pelo peru, para se dedicar de imediato à grande paixão da sua vida natalícia: os coscorões. Com ele aprendi que a terceira idade nos enche realmente de sabedoria.

Sinto falta dos meus tios-avós, tal como sinto falta dos meus avós. Os avós não precisam de fazer grande coisa para tornar os natais especiais, basta que andem ali pela casa, quais figurantes. Como o meu avô, que passava boa parte do tempo a dormir no sofá e que emprestava quentinho à casa. Uma lareira humana. Pensando bem, acho que o devíamos ter transferido de vez em quando para o corredor, para ver se aquecia aquela parte da casa, que era gélida nessa altura do ano. Eu tinha de correr do quarto para a sala, para não se formarem pedras de gelo nos rins.

Agora, o papel de netos passou para os meus filhos e sobrinhos. A grande diferença que noto em relação aos natais da minha infância é que actualmente os calendários do Advento com chocolatinhos se banalizaram. Eu, em miúdo, só tive direito a uns calendários com uns bonequitos roscofes da Nossa Senhora e do Menino Jesus e nada de chocolates. Sim, há aqui algum ressentimento.

De resto, é tudo muito parecido. Se hoje dizem que as crianças estão perigosamente expostas à publicidade de brinquedos, eu então era um poço de radioactividade publicitária. A minha lista de prendas era decalcada dos anúncios que via entre desenhos animados, d’A Minha Agenda RTP ao Pulgas na Cama, passando pelo Tragabolas. Eu queria tudo o que aparecia nos anúncios. Se anunciassem o “kit de iniciação à heroína”, tinha de estar na lista.

Aviso: O autor desta crónica compreende que algumas pessoas possam não reconhecer as referências presentes neste parágrafo, pelo facto de o cronista já ser quase ancião ou praticamente um jovem, conforme o ponto de vista.

Também mudou a forma como encaro o presépio, que em nossa casa é grande e envolve considerável produção. Antigamente empenhava-me em pôr as figuras no presépio seguindo à risca o teatrinho bíblico e as regras de perspectiva, com as peças maiores à frente e as mais pequenas atrás. Embora se notassem brechas nessa lógica, porque tínhamos um pastor de flauta que era maior do que os camelos dos Reis Magos, logo ao lado. Havia também a figura cuja base se partira e da qual recusávamos desistir, como um ferido de guerra que não podia ficar para trás. Tentávamos equilibrá-la mancamente num pedaço de musgo, mas ela teimava em cair, como se dissesse: “Vão, deixem-me! Eu fico aqui! Vocês têm mais bonecos com que se preocupar. O presépio precisa de vocês!” De facto, a dada altura, acabávamos por deixá-la estendida porque não havia paciência para reanimações de dois em dois minutos.

Os problemas de electrificação também eram recorrentes no presépio. Por vezes as luzes falhavam onde eram mais necessárias, na manjedoura, mergulhando a Sagrada Família no reino das trevas. Dava a ideia de que alguém daquele agregado familiar se tinha esquecido de pagar a conta da electricidade e que a EDP lhes tinha cortado a ligação, logo no dia em que precisavam de receber rebanhos de amigos e de ovelhas. Aliás, as luzes do presépio eram tantas que só o exercício de as camuflar ardilosamente no meio do musgo e do restante cenário, juntamente com a respectiva manutenção, era coisa para criar dois ou três postos de trabalho temporário.

Nos dias que correm divirto-me mais a trocar a ordem das figuras do presépio, o que não agrada a certos sectores da família, mas para mim é quase irresistível testar as possibilidades de tantas figurinhas juntas. Se pusermos um Rei Mago no lugar do S. José, por exemplo, damos imediatamente origem a um escândalo ao estilo telenovela “Belchior exige a Maria que conte a verdade a José, de que o bebé é seu. Não é por acaso que anda a oferecer ouro todos os anos”.

Fazendo o balanço, o Natal é obviamente mais divertido em criança, porque é possível manter um pico de entusiasmo contínuo ao longo de um mês que só adultos bipolares conseguem igualar nos seus melhores períodos de euforia. Acho que foi por isso que os adultos investiram tanto na comida natalícia, para arranjar pontos de interesse para eles. O que se nota em particular nos doces, que são quase infindos, e com nomes tão estranhos que muitos podiam substituir a palavra “tabefe” de forma credível numa frase: “Vê lá se não queres apanhar uma rabanada?” “Experimenta e levas com um par de coscorões!”

O engenho natalício do ser humano é impressionante, porque todos têm algo por que ansiar independentemente da idade, do Tragabolas ao coscorão. E quem não concordar comigo leva com duas azevias na fronha.

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