O Paço lento de onde veio a independência

D. João II podia ter ficado em Vila Viçosa a tocar órgão e a olhar para as suas porcelanas chinesas, mas a 1 de Dezembro de 1640 seguiu o ímpeto da revolução. 378 anos depois da Restauração da Independência, voltamos à terra crescida em volta do Paço Ducal, onde os habitantes querem construir museus e bibliotecas.

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A riqueza está toda nos salões. Cómodas do século XVII, o dourado de um cadeirão Rocaille, tapeçaria persa e de Arraiolos, porcelana chinesa, peças raras do Japão, São Francisco Xavier a segurar um coração com a mão esquerda, as pinturas a óleo do rei D. Carlos, a colecção de cristais. Tudo visto na penumbra natural do Outono, antes que o sol acabe de descer, já que não há luz eléctrica no Paço Ducal de Vila Viçosa (cabos brancos sobre frescos do século XVI não ficariam bem). “O espaço mais animado” da casa é, no entanto, a cozinha, confirma Tiago Salgueiro, técnico superior da Fundação da Casa de Bragança, que gere o espaço. Era aqui que perto de 40 trabalhadores levantavam recipientes de cobre para aquecer a água dos banhos, esmagavam alho com a ajuda de um grande almofariz e fabricavam em enormes tachos as ceias faustosas dos anos de 1500 em diante. Saíam sopas de cevadinha, leitões assados, foie gras, capões com arroz, pão-de-ló e madalenas. As cebolas vinham dos três hectares da Horta do Reguengo (cultivada até aos anos 60 do século passado) e as carnes das manhãs e tardes de caça na Tapada Real, onde consta que ainda hoje correm veados e gamos.

Mas não era a cozinha que os duques de Bragança queriam mostrar aos visitantes. Quando um membro da corte espanhola – ou um embaixador japonês – chegava com as suas calças abaixo do joelho a Vila Viçosa, a fachada maneirista de 110 metros, toda em mármore – “o maior exemplar da arquitectura civil do nosso país” – tratava de exclamar: “Reparem onde está o poder!” “O que eles sempre tentaram fazer, através de uma lógica de influência política, foi, pelas pinturas murais e a riqueza da decoração, mostrar aos convidados e à própria corte que estava em Lisboa que o duque de Bragança era uma figura de peso no panorama ibérico e até europeu”, concretiza o nosso guia.

O “peso” veio a confirmar-se em 1640, com a subida do duque D. João II ao trono (tornando-se, então, D. João IV) e a Restauração da Independência depois de 60 anos de domínio filipino (embora a soberania portuguesa apenas tenha sido oficialmente reconhecida  em 1668). No século XVII, não havia outra família que não a de Bragança com estatuto para fazer frente ao poder espanhol. E, além do cultivo das artes, é a tal “estratégia de encenação do poder”, na expressão de Tiago Salgueiro, que se desdobra numa visita ao passado erudito do Paço Ducal, onde cerca de 350 pessoas prestavam serviços, “num ritual muito semelhante ao da corte real em Lisboa”.

A moral e o homicídio

Para percorrer todo o Paço – contando com a Armaria, o Tesouro, o Museu de Carruagens e a Colecção de Porcelanas (há ainda os museus de Caça e de Arqueologia no Castelo de Vila Viçosa) – é preciso um dia inteiro. Já a visita mais curta, no Andar Nobre, dura cerca de 45 minutos. Não é fácil humanizar uma casa que vive dos mortos, mas há um esforço por parte de quem nos guia em tornar figuras como D. Jaime, o construtor do Paço; D. João II, o primeiro duque a tornar-se rei; ou D. Manuel II, o bibliófilo que sucumbiu à implantação da República, homens com mágoa, que faziam a barba e liam poesia. 

D. Jaime, por exemplo, seria um sujeito melancólico que, apesar de bastante mais velho, casara com Dona Leonor de Mendonça. Talvez enquanto o duque caçava ou admirava o seu novo palácio, Leonor tenha encetado uma troca de sinais com António Alcoforado, um jovem pajem do Paço. Começaram as suspeitas. “Numa noite, o duque colocou dois guardas no jardim, que observaram a subida de António Alcoforado para a câmara de Dona Leonor. O duque sentiu a sua honra manchada e acabou por, ele próprio, à frente dos filhos, matar a duquesa, e mandou um escravo negro executar António Alcoforado na cozinha”, confessando mais tarde o crime às autoridades, como relata Tiago Salgueiro.

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Hoje, o “quarto do adultério” é conhecido como a Sala Dourada ou a Sala da Duquesa, mas, de porta em porta, “é difícil fazer uma leitura objectiva de como seria o edifício original, porque ao longo destes mais de 500 anos houve várias modificações”. As linhas douradas dos aposentos de Dona Ana de Velasco, por exemplo, poderão ter dado lugar, um dia, ao gabinete de trabalho e sala de estudo de um dos duques.

Mas é a Sala da Restauração “a mais importante do ponto de vista simbólico”, com o bigode rijo de D. João II a pairar sobre nós. A partir de 1630, tinha o jovem João 26 anos e andava ocupado a engrandecer a sua biblioteca musical, as atenções começaram a concentrar-se sobre ele. Portugal era há 50 anos governado pelos espanhóis e “havia um descontentamento generalizado, com o aumento dos impostos, crises de fome, crises na produção de cereais”, etc. Criou-se o Movimento dos Conjurados e, um dia, um emissário foi falar com o duque, que estava a caçar na Tapada Real. “A proposta foi: ‘Senhor D. João, oitavo duque, descendente directo de D. Manuel I, nós queremos voltar a ser independentes e o senhor é a pessoa certa para liderar este movimento de rebelião’”, recria o contador de histórias Tiago Salgueiro.

Existem dúvidas entre os historiadores sobre a postura que o duque terá assumido – se aceitou a aventura de imediato ou se se deixou travar pelo medo. “Houve quem dissesse que preferia ficar em Vila Viçosa, a tocar órgão e a caçar na Tapada”, diz o antropólogo de formação, que prefere, no entanto, a visão mais romântica e feminista do episódio. “Conta-se que o duque terá chegado com o seu séquito a esta sala [da Restauração], onde se encontrava a sua esposa, Dona Luísa de Gusmão, a quem terá pedido uma opinião. E ela ter-lhe-á dito que preferia ser rainha uma hora do que duquesa para toda a vida.” A história não-confirmada, mas em que todos gostam de acreditar, ainda hoje circula por Vila Viçosa.

Os Lusíadas e os Reis Magos

Era o que todos desejavam, desde 1501, mas, com a subida do oitavo duque ao trono, “o Paço Ducal de Vila Viçosa perdeu um pouco do seu brilho”. Quase todo o recheio artístico foi levado, em 300 carruagens, para o Paço da Ribeira, em Lisboa – Dona Luísa de Gusmão deveria estar radiante com isso – e uma grande parte acabou por se perder em 1755, o ano do terramoto.

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 Ainda assim, mais do que os bens, a erudição foi algo de transversal ao ducado e essa atmosfera ainda hoje embala o passeio pela casa. É como se os tubos de um órgão nos amparassem lá de cima e passassem por nós vestidos fartos a ler o Renascimento em voz alta. Começou com D. Jaime I, que se inspirou nas influências de Parma e Florença trazendo para Portugal “uma arte de finura, elegância e voluptuosidade”, tal como o historiador de arte Adriano de Gusmão descreveu o Maneirismo; e foi até D. Manuel II, criador de uma biblioteca rara que começou para estudar a expulsão dos judeus e se estendeu numa das colecções mais valiosas de livros quinhentistas e seiscentistas, de que fazem parte a primeira edição de Os Lusíadas, de Luís de Camões, ou um exemplar de Vita Christi, de Ludolfo da Saxônia (que durante muito tempo se pensou ter sido o primeiro livro impresso em língua portuguesa).  Estes são os livros “reservados”, que podem ser consultados mediante um pedido à administração da Fundação da Casa de Bragança, mas à disposição do comum leitor está um acervo de 50 mil publicações.

Nas bases desta “formação humanista muito sólida” dos duques de Bragança está também a forma como eles viam o mundo. Quase 500 anos antes daquilo a que chamamos de globalização, arranjaram maneira de construir a sua Internet pós-medieval. “Havia emissários espalhados pela Europa que iam enviando todas as inovações do ponto de vista literário, militar, cultural, político. Os duques raramente saíam deste território mas tinham uma percepção exacta daquilo que acontecia lá fora.”

Nunca deixando para trás o trabalho dos seus ascendentes, construíram uma escola dedicada à pintura mural – “a arte a fresco teve grande influência não só no Paço, mas também em vários conventos e casas particulares” de Vila Viçosa; e criaram o Colégio dos Reis Magos, “que preparava os músicos para as cerimónias litúrgicas na capela”, onde ainda hoje a acontecem recitais de música clássica. “Chegou a ponderar-se construir uma universidade no Convento dos Agostinhos”, mesmo em frente ao edifício do Paço, acrescenta Tiago Salgueiro. Se tudo isto era encenação? Não. Tudo isto era real.

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