Política e políticas

A soberania reside no povo. Qual soberania? A de apenas votar de x em x anos? É sobejamente pouco. E enganoso.

A política está cada vez mais capturada pela aparência, pela obsessão do actualismo, pela catadupa de notícias devoradas umas pelas outras, pelas sondagens e likes, pelo primado da conveniência, pelo tacticismo sem estratégia, pela erosão do poder-dever. A ideia de política com ética vem-se rarefazendo, porque se para a política muitas vezes basta parecer (e aparecer), para a ética não basta a “markética” de parecer, é mesmo preciso ser.

O espectáculo do anúncio tornou-se central. Já não é preciso fazer, basta anunciar. O escrutínio e acompanhamento da acção política perde-se na penumbra do tempo e na erosão da memória colectiva. Não se age, antes se reage, em agendas mais marcadas pelo oportunismo do que pela convicção. Abraçam-se minudências para se procrastinarem os grandes desafios. Mistura-se a insignificância com a gravidade, a festarola com a solenidade. As ideias tornaram-se moldáveis, volúveis, permutáveis, negociáveis em forma de plasticina intelectual. Pelo mundo fora, há fartura de políticos dos direitos, escasseiam políticos dos deveres e estadista é uma espécie em vias de extinção.

Neste quadro têm sucesso os mais espertos, às vezes os mais falsos, aqueles para quem os fins sempre justificam os meios. Uma forma quase darwinista de preservação.

As ilimitadas formas de comunicação tornaram o jogo político numa corrida sem tréguas, mas também sem a exigência de se pensar para além do dia seguinte. Mais do que discutir ideias, formulam-se expedientes. O que hoje é considerado fundamental, amanhã pode passar a secundário e vice-versa. O que ontem foi uma promessa, amanhã poderá ser uma omissão. Por tacticismo ou por incompetência, confunde-se a árvore com a floresta. A compulsão de se discordar ou concordar é quase sempre apenas guiada por se ser oposição ou poder.

A míngua da ética da convicção e a diluição da ética da responsabilidade potenciam abordagens egoísticas ou, no máximo, utilitaristas, teleologicamente desprezíveis e favorecem ambientes corruptíveis e dissolventes. Hoje, diante de conflitos de interesses reais ou potenciais, moldam-se as leis e as regras para, não raro, legalizar o que nem sempre é legítimo. O pudor já nem sequer é um fiável regulador ou “termóstato” de conduta.

À falta de argumentos ou à boleia da preguiça intelectual, opta-se crescentemente por etiquetagens redutoras e perigosamente simplistas. Os “ismos” e os “istas” passaram à categoria de insulto alegremente papagueado que, todavia, esconde a ignorância. Em curto-circuitos axiologicamente indigentes, tuita-se, instagrama-se, facebooka-se, numa mistura de pobreza linguística, sintaxe primária, aversão ao raciocínio profundo e desprezo pela memória.

As fronteiras de interesses entre o que é ou deve ser público e sujeito à tutela do bem comum e o que é privado estão sujeitas a subjectivismos interpretativos, volúveis e movediços em função do contexto que existe ou se quer que exista.

A autenticidade, isto é, a conformidade ontológica entre ser-se, estar-se, pensar-se, dizer-se, fazer-se, esboroa-se e o mascarado só precisa de, de quando em vez, trocar de roupagem para prosseguir o fingimento.

Muda-se em razão das conveniências, não em função das convicções. Ou das dinâmicas e das narrativas, como agora se ouve. As doutrinas políticas já não são o que eram e as ideologias cedem ao pragmatismo de qualquer realpolitik doméstica ou importada.

A linguagem parece perder a força da representação genuína para ser um instrumento ao serviço de objectivos ideológicos, que se servem da “correcção política” para tudo moldarem a arquétipos de construtivismo social. A mistura sórdida de individualismo agressivo e indiferentismo esboroa o primado da individualidade e até da dignidade da pessoa.

Os poderes transformam-se em sociedades de marketing comercial e de merchandising político. As estatísticas, torturadas a bel-prazer, tornaram-se a mãe de todos os instrumentos de análise, conveniência ou omissão. O Estado de direito, não raro, fica refém de poderes não escrutinados e de forças ocultas ou dissimuladas.

Cada vez mais se quer fazer restringir a responsabilidade política à culpa pessoal como forma de ultrapassar momentos críticos e de ladear a prestação ética de contas perante os representados. É o tempo do talvez, do apesar de, do caso tivesse sido ou de qualquer outra adversativa. É o tempo de, perante um problema, uma tragédia, se entrar num jogo de culpas, mas não de desculpas, num assomo de hipocrisia, limitando-se (quando conveniente) o Estado à Administração Central. Nada acontece diante da infracção e devassa por meios ilícitos de direitos cívicos inalienáveis, possibilitadas por um Estado de direito fraco, permeável, transaccionável q.b., aproveitado por certa comunicação social vampiresca que não olha a meios. Nada acontece a não ser os inquéritos da praxe sem fim à vista e com os responsáveis a assobiar para o lado.

A soberania reside no povo, dizem os preceitos constitucionais das democracias no mundo. Qual soberania? A de apenas votar de x em x anos? É sobejamente pouco. E enganoso.

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