Reutilizar Edifícios e transformar a Cidade

A exposição “Físicas do Património Português. Arquitetura e Memória” constitui um contributo fundamental para uma reflexão crítica sobre o legado moderno.

O século 20 construiu um conjunto edificado que superou largamente o legado deixado pelos séculos anteriores. As cidades cresceram e o território foi substancialmente urbanizado com infra-estruturas que redesenharam a paisagem urbana e rural. Não só se edificaram novos programas para os edifícios públicos e privados da sociedade moderna como também se construiu um novo sistema de rede de infra-estruturas que exponenciaram as vias de comunicação e de abastecimento, como é o caso das estradas e das barragens.

Na transição do século 20 para o século 21, as instituições ligadas ao património começam progressivamente a preocupar-se com este legado e com o seu significado no quadro das políticas patrimoniais, o que obriga a uma mudança de paradigma.

Assim, a intervenção em edifícios e nas infra-estruturas modernas, construídos entre 1925 e 1965, constitui uma questão recente para a Arquitetura, apesar de amplamente discutida desde 1988, principalmente nas conferências e nas publicações do DOCOMOMO - Documentação e Conservação do Movimento Moderno.

A reflexão sobre este problema centrou-se, num primeiro momento, na investigação e nos projetos de intervenção das obras mais significativas, como a casa Tugendhat em Brno de Mies van der Rohe ou o sanatório de Zonnestraal em Hilversum de Jan Duiker. Debateu-se assim, largamente, o significado cultural e arquitetónico dos edifícios e conjuntos urbanos, as estratégias de restauro, a fragilidade técnica, a materialidade, a especificidade do programa, o enquadramento político e social, o contexto urbano e paisagístico, etc.

Este elevado grau de exigência começou a ser objeto de cursos de conservação e restauro que formaram arquitetos para a resolução deste problema específico. Rapidamente, essas obras conquistaram um estatuto patrimonial e tornaram-se objetos museológicos integrantes de uma identidade global e local, que são referências de um período histórico que interessa salvaguardar.

Contudo, num segundo momento, entendeu-se que o problema das obras excecionais era significativamente distinto do problema das obras correntes que construíram as cidades e o território em dois períodos de grande expansão: após as duas grandes guerras mundiais entre 1918 e 1940 e após 1945 até ao final dos anos 1960. Este fenómeno é possível observar em todo o mundo, mesmo nos países que não estiveram diretamente ligados a essas guerras. Os bairros de habitação ou as áreas industriais que emergem nas periferias das cidades são talvez o melhor exemplo deste processo global, ainda que sempre marcado por questões locais (políticas, económicas, culturais, etc). Neste caso, as obras têm um valor relativo, muitas vezes como objetos que dão forma a um conjunto, outras vezes como objetos que ainda apresentam qualidades espaciais ou construtivas que importa reutilizar.

Após décadas de uso intenso e, em muitos casos, de abandono, este enorme conjunto edificado está hoje em rápido processo de transformação, desde o restauro à demolição, passando pela reabilitação ou pela reutilização, ainda que, muitas vezes, para um uso temporário. Estas obras não adquirem facilmente o estatuto patrimonial, apesar de constituírem um importante legado da cultura e da sociedade moderna que interessa valorizar, na construção permanente de cidades mais diversas e mais inclusivas.

Os arquitetos convidados para intervir nas obras mestras do movimento moderno foram selecionados, de um modo geral, entre três tipos: os estudiosos do movimento moderno, os que têm uma formação específica ou aqueles que já tinham um reconhecimento público. Contudo, no caso da intervenção nas obras correntes coloca-se um problema distinto. O aumento exponencial das intervenções nos últimos anos obriga o mercado a recorrer a arquitetos generalistas, sem uma especialização específica, podendo qualquer profissional ser confrontado com este tipo de encomenda.

Assim, por um lado, a formação de base do arquiteto nas escolas de Arquitetura, e não ao nível da pós-graduação, tem de integrar a reabilitação de edifícios modernos, numa perspetiva interdisciplinar, tanto no âmbito da Teoria e História da Arquitetura, da Geografia, das Ciências Sociais, assim como no contexto do Projeto e da Construção, com Ateliers de Projeto onde a prática do projeto explore metodologias e ferramentas apropriadas à resolução dos problemas específicos da arquitetura e da cidade moderna, nomeadamente envolvendo os utilizadores e os cidadãos na conceção do projeto participado. Por outro lado, o Estado tem de integrar nas suas equipas de projeto, de avaliação de projetos e de manutenção de obras públicas, técnicos que tenham conhecimento e experiência dos critérios e das metodologias inovadores e inclusivos que são inerentes a este tipo de obras, de forma a garantir a sua correta reutilização.

Este é um dos problemas que emerge do atual contexto de políticas públicas e de promoção privada que aposta na reutilização de edifícios e de infra-estruturas como um bem cultural e social mas também como um produto económico. Neste sentido, a exposição “Físicas do Património Português. Arquitetura e Memória” que inaugura no dia 4 de dezembro no reutilizado Museu de Arte Popular, constitui um contributo fundamental para uma reflexão crítica sobre o legado moderno, mas também sobre a cidade contemporânea que estamos a (re)construir.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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