Warhol na imensa tela que é Nova Iorque

Saunders e a parábola da raposa, os jovens que já não sabem ser íntimos e Warhol na imensa tela que é Nova Iorque.

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Andy Warhol JOHN MINIHAN/GETTY IMAGES

Chegar a Nova Iorque com a primeira neve do ano dispensa programa alternativo. Nada compete com o silêncio daquele branco puro. Depois, cada pegada é tanto um ultraje à perfeição quanto exercício da mais vibrante liberdade. Caminho e deixo rasto até à Book Culture, livraria no 536 West da rua 11, bem perto do diner que ficou conhecido pela série Seinfeld. Cumpro uma rotina de sempre: ver o que há de novo. E o primeiro livro em que pego não é bem uma novidade. O conto foi publicado pela primeira vez nas páginas do jornal The Guardian, em 2013, mas está ali pela primeira vez em livro numa edição de capa dura muito bonita da Random House. Chama-se Fox8 e são 47 páginas escritas por George Saunders e ilustradas por Chelsea Cardinal, a carta de uma raposa, fox, aos Yumans, numa língua que ela aprendeu a dominar ainda que de forma muito livre. Os responsáveis pelo desenvolvimento estão a cortar a floresta e a raposa tem de caminhar por uma paisagem de centros comerciais. É mais uma parábola brilhante do autor de Lincoln no Bardo (Booker em 2017) e Pastoralia, um mimo que termina com a seguinte frase no tal idioma que a raposa aprendeu para falar com os homens: “If you want your Storys to end happy, try being niser.”

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Foi Saunders, convém lembrar, quem afirmou que “a literatura é uma forma de carinho para com a vida. É o amor pela vida a ganhar a forma verbal”. Vindo de alguém que pratica a sátira como uma inventividade rara, melhor levar a frase a sério. No silêncio da neve, ela parece ganhar uma dimensão sagrada.

Mas há tantas coisas para cogitar. O artigo que faz capa da Atlantic. A recessão do sexo, uma reflexão sobre o modo como os mais novos estão a fugir à intimidade, em boa dose porque deixaram de saber dominar ferramentas de convivialidade. A ler.

Depois há Andy Warhol e isso leva tempo. Uma retrospectiva no Whitney, a primeira desde 1989, agora, no momento em que o artista faria 90 anos. Andy Warhol From A to B and Back Again é um olhar mais pessoal sobre um artista que se confunde com Nova Iorque e o modo como toda a sua produção é o reflexo de um lado mais íntimo que tendemos a esquecer porque a Pop por ele produzida se entranhou no nosso quotidiano de forma a quase esquecermos que houve uma pessoa ali, antes de tudo. Estou disposta a enfrentar as longas filas para ver outra vez Warhol. Para mim, foi, e continua a ser, um instigador de curiosidade. Pela América, pela arte, pela literatura, pela música, pelo cinema, por Nova Iorque. Warhol não é só ele, é a grande tela que montou e ajudou a compor para que todos nos reflectíssemos nela. Visionário, profético, excessivo, cabem nele muitos adjectivos, mas ambíguo talvez seja suficientemente complexo para começar a tentar entendê-lo também além do imediatismo que ele trabalhou na arte A exposição está lá a provar que Warhol sobreviveu em várias décadas aos 15 minutos de fama que previu para cada um de nós. No Whitney até 31 de Março. 

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