Os desapossados de Pedro Costa e Sérgio Tréfaut

Na mesma semana e separados por algumas centenas de metros, foi possível cruzar os olhares e modos de pensar o cinema de Pedro Costa e Sérgio Trefaut, o primeiro com uma exposição — Pedro Costa Companhia — a decorrer em Serralves até final de Janeiro e o segundo através do visionamento e debate (10 de Novembro), que moderei no Cinema Trindade, do seu mais recente filme, Raiva; o percurso de Tréfaut perfaz, então, oito longas, tantas quantas Costa, sendo os dois contemporâneos — o primeiro começou com uma curta Alcibíades em 1991, Costa arrancou com O Sangue, longa de 1989.

Tréfaut recusa o tema dos desapossados, onde coabitam os trabalhadores sem recursos para uma vida digna e os emigrantes sem o devido acolhimento das autoridades e sociedades de um país, como possível ligação dos vários pontos de uma obra de mais de 20 anos, e continua a esquivar-se quando lhe propomos uma alternativa, uma filmografia à procura do seu país, ele que nasceu em São Paulo, filho de português e mãe francesa, que estudou em França (Filosofia); exemplifica com paragens que escapam a essa unidade, como Fleurette (2002), filme sobre as vidas passadas da mãe, ou A Cidade dos Mortos (2009), expedição ao Cairo onde a vida pulsa em redor da maior necrópole do mundo. Prefere pensar no seu percurso como uma construção filme a filme, ele que não estudou cinema e aprendeu fazendo, onde pelo caminho também foi jornalista e programador, com destaque para a Direcção do Doclisboa entre a realização de Lisboetas (2004), olhar implicado sobre as vivências e dificuldades das várias comunidades de estrangeiros na capital e a viagem ao Cairo.

Raiva, segunda ficção do realizador, adaptando o romance neo-realista Seara de Vento (1958) de Manuel da Fonseca, que narra a revolta de um homem a quem é privado o direito ao trabalho, história de opressão que quer relacionar o poder dos latifundiários com o mundo do trabalho de outros tempos, do nosso tempo, tem sido visto, então, como estabelecimento do tema dos desapossados como preocupação persistente, após anterior passagem pelo mesmo território — Alentejo, Alentejo (2014). Quando questionado sobre o assomo repentino da cinefilia em Raiva, com influências evidentes dos corpos e paisagens do western de Ford e Anthony Mann, onde lhe elogiamos a secura, a supressão de diálogos e a fuga ao formalismo onde alguns querem encerrar o filme, ele confirma, pois se Treblinka (2016) não seria possível sem os comboios de Shoah (1985) de Lanzmann, a história do cinema é aqui determinante e reforça a ideia de construção peça a peça de uma obra.

Onde Tréfaut se furta, Costa constrói um tema, dir-se-ia um ideário político, de forma inegavelmente consistente, como demonstra a extraordinária exposição que se dispõe na penumbra das várias salas de Serralves. A exposição cruza disciplinas e afinidades conhecidas, com artistas como Rui Chafes e Paulo Nozolino, a linguagem do cinema dos camaradas Straub-Huillet e uma profusão de filmes, onde se destaca a velha e autoral Hollywood: a luz de Ford, o romantismo de Borzage, o negrume de Lang (ainda na Alemanha que emprenhava o nazismo), o humanismo de Chaplin, os excessos do iconoclasta Stroheim, e a ode à América de Stars in my Crown (1950) de Torneur, onde esperávamos encontrar I Walked With a Zombie (1943).

Após a conclusão da formação na Escola Superior de Teatro e Cinema (juntamente com Manuel Mozos, João Pedro Rodrigues, Joaquim Sapinho ou Teresa Villaverde, que corresponde à primeira fornada de cineastas saídos das mãos de António Reis e Paulo Rocha, entre outros), a primeira longa de Pedro Costa, O Sangue, histórias de infância e juventude, serve para arrumar as influências, de The Night Of The Hunter (1955) à estética e aos lugares de Mizoguchi (Contos da Lua Vaga [1953] está também naqueles pequenos ecrãs de Serralves). Se é uma das grandes primeiras obras do cinema português, a “obra” de Costa só arranca à segunda: de Cabo Verde e da sua paisagem vulcânica, da Casa de Lava (1994), brotará o tema dos marginalizados, e com Ossos (1997) Costa começará a descida aos abismos das Fontainhas, onde elegerá os zombies, criaturas fantasmáticas, deserdadas mas dotadas de virtude e linguagem próprias, que terá em No Quarto da Vanda (2000) o seu magnus opus, mas que parecem uma fonte inesgotável, mesmo depois de saídos das catacumbas das Fontainhas, como verificamos no embate com os edifícios com programa mas desadequados para Ventura e companhia em Juventude em Marcha (2006) ou na descida às memórias de um Portugal colonial em Cavalo Dinheiro (2014).

As fotografias a preto e branco de Walker Evans em Let Us Now Praise Famous Men, que retratam trabalhadores rurais durante a grande depressão, a dificuldade do trabalho e das condições de vida aliada ao enobrecimento dos retratados, como quem constrói arquétipos, estabelecem a obra de Pedo Costa numa filiação e num diálogo: Vanda, Ventura e demais protagonistas do seu cinema, os tais desapossados, percorrem um submundo iluminado pela Hollywood clássica, com Ford como uma das referências maiores, o que os engrandece, os eleva à condição de ícones.

Perpassa por vezes a ideia de que o cinema de autor em Portugal, num combate onde na outra trincheira se posiciona a produção com pretensões comerciais, apresenta apenas uma via: Pedro Costa e Sérgio Tréfaut contrariam isso, ao projectarem a riqueza, a diversidade das maneiras de fazer do nosso cinema.

Vítor Ribeiro é programador do Close-up — Observatorio de Cinema na Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão

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