Quando Staier toca Seixas

Um disco do maior relevo e com o maior cravista da actualidade.

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O maior cravista da actualidade, Andreas Staier HIROYUKI ITO/GETTY IMAGES

Embora até exista um agrupamento britânico dedicado ao reportório polifónico designado por A Capella Portuguesa, é insuficiente a difusão internacional por meios discográficos de obras de autores portuguesas, ainda que alguns exemplos de relevo existem, da polifonia tardia da Escola de Évora e da época barroca. Philippe Herreweghe gravou a Missa Miserere Mihi Domine e o Magnificat de Manuel Cardoso, mas têm sido os grandes Tallis Scholars a abordar a polifonia designadamente com magníficas gravações dos Requiem de Duarte Lobo e Manuel Cardoso (em Março de 2015 deram inolvidável recital na Casa da Música, incluindo o Requiem de Cardoso).

Três outros registos sobressaem, as Lamentações de Quinta-Feira Santa e os Salmos das Vésperas de João Lourenço Rebelo por Paul van Nevel, o Te Deum de António Teixeira por The Sixteen e Harry Christophers e La Giuditta de Francisco António de Almeida por René Jacobs, todas (essas e as duas dos Tallis Scholars referidas), obras e interpretações magníficas. E não se pode esquecer que o cravista norueguês Ketil Haugsand dedicou numa importante editora, a Virgin Veritas, um disco dedicado a obras religiosas e sonatas de órgão de Carlos Seixas, aliás com a participação do Coro de Câmara de Lisboa. E agora surge-nos este À PortuguesaConcertos e Sonatas Ibéricas com o maior cravista da actualidade, Andreas Staier, a solo e dirigindo a Orquestra Barroca da Casa da Música numa editora de circulação internacional garantida, e disco que inclui nomeadamente obras de Carlos Seixas e Domenico Scarlatti.

Notar-se-á que entre o título e o subtítulo há uma disparidade, entre “Portuguesa” e “Ibérica”. Para mais, em ligações mais ou menos ténuas, há também obras de dois compositores britânicos, William Corbett e Charles Avison. É algo confuso?

O barroco foi antes de mais italiano, excepto em França. Na Alemanha havia uma tradição própria que remontava aos corais luteranos, tradição que continuou apesar da generalizada adopção dos estilos italiano e francês. E na Inglaterra havia também uma tradição própria, aliás remontando ainda ao maneirismo, ao período isabelino-jacobita. Estas eram as “escolas nacionais” fundamentais, embora se deva dizer que a existência de um estilo próprio também em Espanha é patente num fabuloso disco precisamente de Andreas Staier, Variacionones del Fandango Español.

Sucede, contudo, que o século XVIII, o do Iluminismo,  foi também o século de um cosmopolitismo, sustentado ou nem tanto, cuja apoteose foram duas colectâneas do grande François Couperin, Les Nations e Les Goûtes-Réunis, isto além da produção do prolífero Telemann sobretudo a colectânea Les Nations Anciens et Modernes. Mas em França havia muito o hábito das suites serem “peças de caracter” mais ou menos (e mais para o menos) imaginária, tão só sugestões. Uma delas é La Portugaise, para viola da gamba, de Jean-Baptiste Forqueray, que o seu filho Antoine transcreveu para cravo (curiosamente existe na net um vídeo do cravista Jean Rondeau exectando a obra em que alguém escreveu o comentário “agora imagine-se o que seria Rondeau tocando Seixas…”!).

É a um caso desses que o presente disco vai buscar o título, ao Concerto Alla Portuguesa de Le bizzarie univeralli de Corbett. Como escreve Fernando Miguel Jalôto nas suas muito elucidativas notas — “é difícil distinguir hoje aquilo que o compositor considerou ser genuinamente português [no concerto]. Talvez o ouvinte consiga encontrar na melancolia do andamento central uma vaga evocação da célebre nostalgia lusitana…”.

Feita esta contextualização há que dizer haver três factos de excepcional importância este disco: que Staier aborde Seixas, que o ponha lado a lado com Scarlatti e que a partir de agora deixemos de poder referir “o concerto de Seixas”, em lá maior, porque é-lhe taxativamente atribuída a autoria também de outro, em sol menor.

Como se calcula, Staier conhece profundamente a literatura concertante para cravo e a sua história. Em Fevereiro, quando da gravação do disco, deu uma entrevista à Lusa, que aliás esteve on line neste jornal (a pesquisa é fácil), em que admitia mesmo a possibilidade de o compositor português ter escrito “o primeiro concerto para cravo”, antecedendo os de Bach. É uma pena, uma oportunidade perdida, que no livrete não haja um pequeno texto de Staier, com toda a sua reconhecida autoridade, afirmando-o.

E quanto às interpretações? No Concerto em lá maior Staier adoptou tempos extremamente rápidos nos andamentos extremos. Podem parecer mesmo despropositados mas fazem com que, com a dedilhação prodigiosa de Staier, fique em relevo a virtuosidade da escrita.

Já com o Concerto em sol menor as questões são outras (já agora outro ponto: já disse como são elucidativas as notas de Jalôto mas é incompreensível a omissão de que a atribuição da obra a Seixas foi trabalho de um dos mais relevantes musicólogos portugueses, João Pedro Alvarenga). A obra é esplêndida, um dos mais belos concertos para cravo, com uma grande densidade de escrita. E uma coisa é ouvir apenas o Concerto em lá maior com os seus tempos rápidos, outra coisa é ouvir ambos os concertos, compreendendo-se então que essa rapidez é um dos factores do contraste entre as duas obras que Staier logrou.

O que não se compreende mesmo no disco é a ausência de sonatas de Seixas. Há três de Scarlatti (que não compôs concertos para cravo) mas, além dos concertos também merecem atenção as sonatas de Seixas, aliás de articulação muito complexa.

E não se invoque a falta de minutagem. Em vez da obra de Corbett, a menos importante do disco, bem que podia figurar aquela outra que agora nos concertos foi apresentada em extra, Les Portugais de Telemann, de Les Nations, obra muito breve (e até seria motivo de atração suplementar do disco, dada a muito maior notoriedade do autor) e duas sonatas de Seixas.

Domenico Scarlatti não compôs concertos para cravo, já se escreveu, mas sobre sonatas suas o britânico Charles Avison compôs 12 concertos dos quais aqui figura um dos mais interessantes, o nº5. É a obra no programa que mais põe em relevo as qualidades da Orquestra Barroca da Casa da Música.

E um disco chamado À Portuguesa termina euforicamente à espanhola, mas aqui mesmo indubitavelmente, com uma transcrição que Staier fez da famosa Musica noturna delle strade di Madrid de Boccherini.

Diga-se enfim que este disco e as garantias da sua difusão internacional e a notoriedade de Andreas Staier permitiram também à Orquestra Barroca da Casa da Música fazer duas digressões internacionais, uma em Fevereiro, quando da gravação do disco, outra agora quando do seu lançamento, que terminou no dia 9 na prestigiada Konzerthaus de Viena.

Apesar das omissões este é um disco do maior relevo.

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