Foi você que pediu 90% do Programa de Governo?

Está na hora de parar de tratar as portuguesas e os portugueses com condescendência.

Na segunda-feira, o Governo divulgou o documento de balanço dos primeiros três anos, em que afirma que 90% das 1100 medidas do seu programa foram “iniciadas”. A contabilidade legislativa à peça teve o seu apogeu no documento A Gestão do Programa de Ajustamento: 1000 Dias, 450 Medidas Cumpridas, apresentado pelo então secretário de Estado Carlos Moedas com a seguinte frase memorável: “Cumprimos mais de 400 medidas de reforma contidas no memorando de entendimento (...). É mais ou menos o Governo ter a capacidade de adotar uma média de três medidas por semana.” É extraordinário! Três medidas por semana! Governantes incansáveis que implementam medidas à segunda, quarta e sexta, e encerram para descanso do pessoal à terça e quinta-feira.

Mas que 450 medidas são estas? Por exemplo, “solicitar aos bancos que apresentem, até final de Junho de 2011, planos de financiamento específicos, que permitam a cada instituição alcançar uma posição de financiamento estável com base no mercado”, mas também esta outra, em tudo diferente da anterior, e curiosamente implementada no mesmo trimestre: “solicitar aos bancos a apresentação, até final de Junho de 2011, de planos que descrevam como tencionam atingir os novos requisitos de capital através de soluções de mercado”. Temos também, no 3.º trimestre de 2011, “Aprovar os Estatutos do Conselho de Finanças Públicas”, para mais tarde, em Fevereiro de 2012, encontrarmos “Assegurar operacionalidade do Conselho de Finanças Públicas”.

O documento-balanço desta semana refere a “introdução de maior justiça fiscal”, com, entre outras medidas, “a recuperação da cláusula de salvaguarda do IMI, a substituição do quociente familiar pela dedução fixa por filho”. Mas quantas famílias foram abrangidas pela salvaguarda do IMI? Que percentagem do seu rendimento representou este alívio fiscal? Quantas crianças, e de que extratos sociais, ganharam, e que outras perderam, com a suspensão do quociente familiar? E que tal um gráfico com o rendimento bruto e líquido de famílias com diferentes níveis de rendimento, com e sem filhos, com um ou dois adultos? Em vez de quantificar o progresso da justiça fiscal, o Governo contentou-se pelo exercício mais fácil e menos interessante de quantificar legislação iniciada.

No rescaldo das revelações da investigação The Implant Files, o Infarmed apressou-se a divulgar em comunicado que os portugueses “podem estar tranquilos” relativamente a implantes médicos perigosos. Acontece que a introdução de implantes no mercado obedece em toda a Europa – incluindo Portugal – a critérios bastante laxistas. O jornalista holandês Jet Schouten tentou, em 2014, aprovar um novo implante para corrigir a incontinência, tendo inventado um dossier clínico que dizia que não havia dados que suportassem a segurança do produto e que uma em cada três mulheres teria complicações. O implante não era mais do que uma parte de um saco de supermercado. Ainda assim, três organizações que aprovam implantes na Europa estavam preparadas para autorizar a comercialização.

O Infarmed afirma que, “na realidade portuguesa, são muito raros os problemas reportados”. Mas serão raros porque não existem ou porque não há mecanismo de reporte? A segunda opção é a mais provável. A Austrália é o único país a ter um registo nacional de implantes mamários, com o objetivo de identificar problemas pós-implante no corpo das pacientes. No Reino Unido, existe um site para reporte de problemas com medicamentos e afins (https://yellowcard.mhra.gov.uk) que inclui explicitamente a opção “medical device adverse incident”. Na falta de um registo deste tipo, o Infarmed podia ter dito como foram tratadas as doentes com implantes recentemente retirados do mercado, como o bloqueador de trompas Essure, em 2017, ou os tristemente famosos implantes mamários PIP, com tendência para rotura, em 2012. Mas nada. Tragicamente, este apelo à tranquilidade acontece uma semana depois de uma teia de irresponsabilidades, desde a autarquia ao Governo central, ter levado à derrocada mortal de uma estrada em Borba. O que não tranquiliza ninguém.

Isto pode parecer um detalhe, mas não é. A OCDE publicou em março de 2017 um relatório intitulado Trust and Public Policy: How Better Governances Can Help Rebuild Public Trust. Um dos fatores determinantes na relação de confiança entre a população e o governo é a abertura (em inglês “openness”), que a OCDE define como “dar aos cidadãos informação útil acerca do que o governo está a fazer”. A palavra-chave aqui é “útil”. Está na hora de parar de tratar as portuguesas e os portugueses com condescendência.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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