O monopólio do protesto e a xanaxização do país

Ao mostrarem-se incapazes de ocupar o espaço que PCP e Bloco deixaram ao abandono, a direita ficou não só sem governo, mas também sem oposição.

A propósito do espírito de tolerância e compreensão que desabou em Portugal no final de 2015, contrariando os quatro apocalípticos anos anteriores, eu afirmei num dos meus últimos textos que “a esquerda tem o monopólio do protesto” no país – e que é esse monopólio que justifica esta espécie de adormecimento generalizado, apesar dos erros que têm sido cometidos pelo actual Governo. Quando a esquerda dorme, o país ressona, e a xanaxização da pátria tem feito maravilhas por António Costa. Tantas maravilhas, aliás, que na entrevista que deu na semana passada à Agência Lusa, o actual primeiro-ministro voltou a repetir um desejo muito significativo: ainda que o PS venha a ter uma maioria absoluta, ele está totalmente disponível para repetir os acordos com a esquerda.

Claro que o efeito prático desta intenção é nulo. Se o PS tiver maioria absoluta, nem o PCP, nem o Bloco de Esquerda, terão qualquer espécie de interesse em estar a fazer pactos com o Governo, preferindo regressar à velha lenga-lenga do PS-pratica-políticas-de-direita. Mas o ponto não é esse. O ponto é que nem por um momento duvido da sinceridade de António Costa – se dependesse dele, continuaria a fazer acordos com a esquerda até ao final dos tempos, porque o preço que pagou nos últimos três anos por ter diminuído o nível de gritaria no país é uma pechincha tendo em conta aquilo que recebeu em troca.

Já houve quem contrapusesse a esta minha opinião uma estatística pretensamente imbatível: houve mais greves na função pública durante a vigência do actual Governo do que na do anterior. Na verdade, isso só me dá razão – o que interessa não é o que existe, mas aquilo que parece existir. E greves de baixa intensidade, sem gritarias desmesuradas, sem grandes protestos em frente ao Parlamento, sem grandoladas ruidosas, sem numerosos sindicalistas sofredores, sem alertas sobre o caos nos hospitais ou sem desfiles na Avenida da Liberdade ao som de Os Vampiros, não são a mesma coisa. É evidente que as centrais sindicais não podem eclipsar-se durante quatro anos; mas é igualmente evidente que a sua postura nada tem a ver com os tempos em que Passos Coelho era primeiro-ministro. Nem José Sócrates. Nem sequer António Guterres. Em troca dos acordos subscritos com a esquerda, António Costa recebeu um silêncio que lhe valeu muitos pontos percentuais em popularidade.

Dir-se-á: mas se o PCP e o Bloco diminuíram a intensidade dos protestos, porque é que a direita não ocupou o seu lugar? A resposta é simples: porque não o sabe fazer, nem tem estruturas para isso. Existe uma rotina de protesto que foi constituída e alimentada durante 40 anos de democracia. Os sindicatos têm milhares de funcionários cujo trabalho não é outro senão esse, e os meios de comunicação social têm formas de trabalhar que são sempre iguais: directo à porta do protesto, conversa previamente combinada com o sindicalista de serviço, números de adesão estratosféricos, jornalistas a debitar a cassete do trabalhador oprimido, discussão do tema nos canais por cabo à noite, e por aí fora. Esta coreografia está altamente rotinada e não é nada fácil de quebrar. Se a esquerda não dança, a comunicação social fica sem par – e a direita não conhece os passos. Esta foi a grande fragilidade de PSD e CDS nos últimos três anos. Ao mostrarem-se incapazes de ocupar o espaço que PCP e Bloco deixaram ao abandono, a direita ficou não só sem governo, mas também sem oposição.

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