Até que o Porno nos Separe ou o amor os junte

De um lado, a matriarca conservadora e religiosa. Do outro, o filho que é uma estrela no universo porno gay. Entre eles, um computador e uma estrada tortuosa. Até que o Porno nos Separe, de Jorge Pelicano, é um documentário pronto a derrubar preconceitos a partir da viagem emocional de uma mãe em mudança. Para ver esta sexta-feira no Caminhos do Cinema Português.

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paulo pimenta

O cordão arco-íris atado à volta do pescoço já a denuncia. É Eulália Almeida, de 67 anos, quem nos abre a porta de sua casa para uma conversa que, ainda não sabemos, se há-de prolongar por duas horas e meia. Pelo meio, há-de chorar, sorrir, esbracejar, sobretudo comover quem a escuta. Mãe-galinha, mãe-coragem, mãe-que-faz-tudo, para não perder o filho e o mundo. Como a do fado que a dada altura trauteia no documentário que nos traz aqui.

Deus ouviu a minha prece
Deu-me um filho encantador
Nunca o hei-de trocar pelos tesouros mais vastos
Ainda que tenha de andar a vida inteira em pedaços

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Jorge Pelicano é o realizador de Até que o Porno nos Separe Nuno Ferreira Santos

“O fado é a minha história”, confessa. E quando o realizador Jorge Pelicano a ouviu cantarolá-lo enquanto descascava batatas e brincava com o gato Kiko, pensou: “Isto é o filme”. É o documentário Até que o Porno nos Separe, que se estreia esta sexta-feira, 30 de Novembro, em Portugal, no festival Caminhos do Cinema Português (21h45, Teatro Gil Vicente, Coimbra), depois de passagens por BAFICI, na Argentina, e Jihlava, na República Checa. Em 2019 deverá chegar às salas de cinema de todo o país. Uma história de amor entre uma mãe e um filho, mas também um filme que quer aniquilar preconceitos, inspirar famílias LGBTI+, falar da Internet e das redes sociais, mostrar que as pessoas não são herméticas, alheias à mudança. Um retrato íntimo cuja conclusão, sem spoilers porque isto é a vida real, é resumida em poucas palavras pelo tal filho, o actor porno Fostter Riviera, Sydney Fernandes no passaporte: “O amor pode mudar tudo.”

Já há muito tempo que o documentarista Jorge Pelicano, autor de Ainda Há Pastores? (2006), Páre, Escute, Olhe (2009) e Pára-me de Repente o Pensamento (2014), queria fazer um trabalho sobre pais e filhos e a, por vezes, “conturbada” relação que os liga. E sempre quis perceber como é que os pais dos actores e actrizes de filmes pornográficos lidavam com uma escolha dos filhos que, provavelmente, não “iria ao encontro das expectativas” por eles criadas. Foi esse o ponto de partida. “Não queria fazer um documentário sobre bastidores da pornografia, queria chegar aos actores para depois chegar aos pais”, conta o realizador de 41 anos, ao telefone com o PÚBLICO. Assim conheceu Fostter Riviera, uma estrela internacional no universo porno gay, actor várias vezes premiado e com mais de 300 filmes no currículo. Dois dias depois de lhe dizer ao que vinha, estava frente a frente com a progenitora, Eulália Almeida, e no final dessa conversa tinha uma certeza: “Este era um filme muito difícil de fazer porque a maior parte das pessoas quer esconder, mas eles queriam contar esta história.” Sydney, aliás, deu-lhe carta-branca. “Ele”, sublinha Jorge, “nunca esteve preocupado com o que a mãe ia dizer no filme, nunca a quis influenciar”.

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O realizador sempre quis perceber como é que pais de actores de filmes porno lidam com uma escolha dos filhos que, provavelmente, não “iria ao encontro das expectativas” por eles criadas.

O documentário, de quase uma hora e meia, arranca com as janelas semicerradas do Bairro de São Tomé, no Porto, onde Eulália vive e Sydney cresceu. Um paralelismo, quem sabe, com o que vem a seguir: o arranque do Windows, um ecrã com uma fotografia no background, uma mulher que se senta, arranja o rato e o teclado e abre a janela do Facebook para percorrer mensagens no Messenger. A partir daqui, o que se vê é um filme a dois tempos: um que assenta nas comunicações digitais entre mãe e filho entre 2013 e 2017, autênticas “cartas de amor nos tempos modernos” que fizeram as vezes de guião, e outro, o tempo real, que corresponde às filmagens feitas entre 2016 e 2017 por uma pequena equipa de três pessoas a tentar ser “invisível”. É através desta linha temporal que o espectador assiste a uma mãe em, por vezes dolorosa, transformação.

Um “filme cheio de preconceitos”

Há muitas Eulálias a separar a Eulália que hoje nos recebe e que, orgulhosa, sai à rua com o seu “amuleto” com as cores da bandeira LGBT ao peito (se alguém a questiona diz que o mundo não deve ser visto “a preto e branco”, antes em tons “arco-íris”) daquela que há cinco anos descobriu que o filho era homossexual e fazia filmes para adultos através de um vídeo de uma entrevista que uma amiga lhe mostrou. Um momento em que o mundo, o seu mundo, parou. “Vejo o meu Sydney a dizer que chegou a fazer um filme na VCI e as lágrimas começaram a cair pela cara abaixo”, recorda a mãe. Fostter Riviera era então um nome em ascensão na indústria. Sydney emigrara aos 23 anos para a Alemanha, atraído pelas melhores condições de trabalho que um webdesigner como ele poderia ter, mas também para seguir o seu caminho na pornografia. E a mãe era a única da família que não lhe conhecia o hobby. “Como é que se diz a uma mãe que se é actor porno?”, questiona hoje, retórico.

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Em Até que o Porno nos Separe vemo-los, ainda, a digerir essa realidade, com emoções à flor da pele, até ao coming out final — o dela. Uma “luta muito solitária”, nas palavras de Pelicano, em “clausura”, num “bairro com muitas janelas” onde todos se entreolham. E sobretudo travada, madrugadas adentro, ao computador, que aqui, “sinal dos tempos”, é também uma “personagem”: “É um filme sobre a relação entre a mãe e o filho e pelo meio está a Internet, que tanto os separa, como os junta.” Entre a câmara e a protagonista está muitas vezes um ecrã e a página de Facebook do filho, cujas palavras em inglês Eulália tenta perceber com a ajuda de um dicionário — também foi com os livros que aprendeu, sozinha, a dominar o computador e a Internet; também foi com os livros que requisitava na biblioteca que começou a “aprender o que era a homossexualidade”.

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De um lado, uma mulher, conservadora e religiosa, devota a Santa Rita, que a vela no seu quarto. Do outro, o filho que lhe caiu nos braços aos cinco meses, fruto biológico de um irmão entretanto falecido. Pelo meio, por todo o filme, lento e denso, angústia, sufoco e um grande “amor obsessivo” (não serão todos?). Contra tudo e contra todos. Entre uma mãe que procura e um filho que não liga, mesmo no dia do aniversário. Entre uma mãe que não percebe e um filho que não explica. Entre uma mãe que, por vezes, parte ao ataque e um filho que não sabe como lhe falar. “O filho também evita a aproximação para não magoar, mas esse distanciamento acabava sempre por magoar”, comenta o realizador, que estava também interessado em apontar o foco para a “obsessão da comunicação” tão comum do mundo das redes sociais. O que é particularmente notório em Sydney, sempre online, mas sempre ausente. “Essa dualidade também me interessava”, reconhece Jorge. “Ele é muito presente na rede social, mas na sua vida pessoal procura um isolamento grande.”

Assumidamente, o filme mostra o ponto de vista da mãe, mas também vai ao encontro do filho em Berlim, onde é filmado em situações de alguma reclusão. Numa das cenas, depois de uma entrevista de emprego, o jovem surge solitário, de carapuço enfiado na cabeça, a atravessar uma rua chuvosa. Quando viu o documentário pela primeira vez, Eulália não chorou, mas aquele momento tocou-a. Percebeu, ao vê-lo, que algo não estava bem e ela nunca soubera de nada. “Entristeceu-me”, confirma. “O filme é a pura realidade da minha vida, do sofrimento que passei para que este filho não se perdesse, para que eu não perdesse esse filho, porque os filhos nunca se perdem.”

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“Não é fácil abrires as portas do teu mundo”, confessa Sydney, “um mundo que escondes de tanta gente”. Porquê fazê-lo então? Vários motivos. Mostrar que a pornografia é mais do que “uma coisa obscena ou ligada à prostituição”. Contrariar a ideia que “todos os actores são pessoas sem formação”, completa Jorge, dando o exemplo do protagonista, aluno de mérito no secundário, actualmente director de produto numa empresa em Amesterdão. Remata o primeiro: “Eu tenho uma família, um emprego, uma vida normal. A pornografia é uma loucura que me deu e gosto, mas não me faz ser menos ou mais do que os outros.” Como ele, também outros: “Gostava de mostrar às pessoas que temos uma mãe por trás, um grupo de amigos.” Este é, nas palavras do realizador, “um filme cheio de preconceitos”, que, espera Sydney, também poderá inspirar outros filhos e outros pais de homossexuais, bissexuais, transexuais. Fora com os tabus, os silêncios, a discriminação — “é tudo”, conclui, “uma questão de vergonha e catolicismo, há que dar amor antes que seja tarde demais”. E, em última análise, também é uma carta de amor: “Será a última forma de dizer à minha mãe que a amo.”

Jorge não sabia como é que tudo ia acabar. “É o prazer de fazer documentário”, realça. Estavam sempre “na expectativa”, a realidade trocou-lhes as voltas um par de vezes, mas ofereceu-lhes um final de bandeja que o realizador filmou de lágrimas nos olhos. É um filme “que demora a ser concretizado” também porque as personagens “estão em constante transformação”. Sente que para os protagonistas a experiência foi uma “espécie de libertação”. Estão “mais aliviados” por atirarem cá para fora o que andava lá dentro a burilar, por “escancarem as janelas”.

Sydney, por exemplo, viu-o 18 vezes. Mudou-o. “O filme”, admite, “fez-me abrir os olhos para a família que eu poderia ter abandonado, mas tive muita sorte por ter uma mãe de garra que não me deixou fugir”. Agora com 29 anos, está apaixonado, mais estável, mais próximo. Não tem feito tantos filmes, não se vai despedir da indústria, mas quer também apostar no seu “trabalho normal” para um dia, quem sabe, abrir a sua própria empresa de produção de aplicações móveis. Por seu turno, Eulália recusa-se a olhar para trás. “Costumo dizer que devia ter menos 30 anos,” graceja. Deixou de ser aquela mulher “que vivia para a casa”. Fez, diz, o seu “coming out” e tornou-se uma activista de mão cheia. Corre as Marchas do Orgulho para discursar (“E eu nunca fui a nenhuma!”, surpreende-se Sydney), é uma das caras da Amplos – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual. Tal como no pós-25 de Abril lutou pelo direito à habitação, abraçou a 100% esta causa. Por muito que o marido por vezes torça o nariz — ele não quis participar no filme (“Na pesquisa percebi que para os homens é muito mais difícil aceitar”, diz Jorge), tal como a filha do casal que, afiança a mãe, está agora arrependida.

A secretária, o seu antigo “canto da dor”, onde tantas vezes chorou vigiada por Kiko, é hoje o seu “canto do amor e da alegria”. Continua a fazer estudos de mercado, inscreveu-se num curso de inglês e num outro de Sociologia na Universidade Aberta. Agradece todos os dias a Santa Rita, gosta muito de ouvir David Guetta e já está a sonhar com o Natal e com a aletria que irá fazer para o filho, se ele vier. Uma pessoa muda ou abre uma nova janela em si mesma? Escreve Eulália, já perto do final do filme, numa mensagem que publicou no seu mural do Facebook a 13 de Março de 2017: “Andei durante vários meses a ponderar se estaria preparada para fazer uma grande loucura: escancarar o meu armário. Não há nada mais forte do que o elo entre uma mãe e um filho porque ser mãe é uma missão maravilhosa mas com muitos desafios. Pelo meu filho, redescobri-me.” 

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Eulália e Kiko Paulo Pimenta
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