As noites e lágrimas de Mihai pedem um plano e abrigo

Câmara apresentou na terça-feira o seu plano de apoio aos sem-abrigo. Nesse dia, começava a saga de Mihai Corfu para escapar à rua. A luta de um assistente social, as mãos atadas de instituições lotadas. E um email para Marcelo. Mihai já tem um tecto. Será suficiente?

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Mihai Corfu tem 45 anos e chegou a Portugal em 2008 Adriano Miranda

O sobressalto tornou-se cicatriz profunda nos dias de Mihai. Quando a saúde enfraqueceu, o álcool anestesiou inquietações. Pouco a pouco, doença e bebida foram cavando o afastamento do trabalho. O biscate como vendedor em feiras ambulantes foi-se, os poucos euros que garantiam a sobrevivência desapareceram, a relação com os “patrões” complicou-se. Mihai Victor Corfu perdeu o seu tecto improvisado, ora em carrinhas de vendedores, ora em tendas. Caiu na rua. Doente, a milhares de quilómetros de Tulcea, a sua cidade romena junto à fronteira com a Ucrânia. Sozinho.

José António Pinto foi dar com ele choroso num colchão junto a um dos blocos habitacionais do Lagarteiro. Era terça-feira, o assistente social fazia o atendimento semanal no bairro, e vieram falar-lhe de um homem caído por ali. Nessa manhã, na reunião camarária, o vereador da Habitação e Coesão Social, Fernando Paulo, apresentava o plano de contingência e política para os sem-abrigo. O município prometia uma equipa a trabalhar nas ruas, a garantia de acolhimento de emergência, uma rede de restaurantes solidários e aposta em alojamento de longa duração. E a vida de Mihai Victor Corfu, caberia naquele quadro?

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Câmara tem sinalizadas 158 pessoas sem-abrigo no Porto

O assistente social de Campanhã - a quem a Assembleia da República deu, em 2013, a medalha de ouro da Declaração Universal dos Direitos do Homem - levou o romeno de 45 anos ao Hospital de São João ainda na terça-feira, deixando-o na sala de espera ao final da tarde. Mas a madrugada chegava e Mihai não tinha resposta. Foi-se embora. Na manhã seguinte, bateu à porta da junta de freguesia. José António Pinto agarrou no telefone e disparou para todos os lados. Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia, Hospital Joaquim Urbano, Centro São Cirilo, quartos de pensões, albergues nocturnos. As respostas repetiam-se: não há vagas, tem de aguardar vez. A noite de quarta-feira ia caindo e o recurso ao 144, linha nacional de emergência social, era já a última esperança. Novamente um não. “Onde está a equipa multidisciplinar de que fala a câmara? Onde está a Segurança Social?”, questiona.

A ajuda veio de uma moradora do Lagarteiro. Abriu-lhe as portas de casa para deixar Mihai tomar um banho. Lavou-lhe a roupa, cedeu-lhe o sofá. Não foi a primeira vez que o fez. Mihai Victor Corfu já não guarda ilusões de felicidade. Sabe da composição de cristal da vida desde menino, percebeu cedo que tudo se pode perder num soluço.  

Aconteceu-lhe pelos 16 anos, quando o pai se deixou morrer numa linha de comboio e a mágoa com a mãe, divorciada dele tempos antes, desaguou numa separação irremediável. “Fui criado pela minha irmã mais velha”, diz Mihai Corfu, olhos vibrantes a acumular lágrimas. Estudou 12 anos, fez tropa, depois entregou-se ao mundo de trabalho. Na construção civil aprendeu a fazer um pouco de tudo. Aguentou-se. Teve um filho.

O abalo veio quando o emprego tremeu. “O país estava podre, ninguém tinha trabalho”, conta. Na angústia do dinheiro escasso para pagar contas, dois amigos falaram-lhe de Portugal: iam emigrar e Mihai podia juntar-se a eles. Fez-se à estrada sem planos definidos.

Foi há dez anos. Mihai Corfu nunca tratou de papelada para se legalizar porque nunca conseguiu um emprego certo. Mas a pele de vendedor chegava-lhe como abrigo: “Conseguia uns 30 euros quando vendia bem, já dava para alguma coisa”, relata num português já bem afinado.

Agora que o “doutor Pinto” lhe deitou a mão, Mihai Corfu decidiu-se a fazer uma desintoxicação. “Preciso de ficar internado uns sete ou oito dias”, diz decidido, as mãos a tremer pela falta de álcool, as lágrimas a cair: “Se me curar não bebo mais.” Para ser acolhido na Unidade de Alcoologia do Porto tem de levar documentos de identificação e exames médicos que, diz José António Pinto, custariam umas centenas de euros. “Onde está a lei que diz que um cidadão estrangeiro sem documentos não pode ter assistência médica em Portugal?”, questiona o assistente social.

A história de Mihai Victor Corfu ganhou lastro. Nas redes sociais, as partilhas do texto do assistente social chegaram aos três dígitos. E à assessora de Marcelo Rebelo de Sousa chegou também um email. Se o Presidente da República “gosta de vir ao Porto comer com os sem-abrigo, tirar selfies e dizer aos órgãos de comunicação social que se preocupa com esta gente”, pensou, então devia saber da história de Mihai: “A política social da cidade é de uma profunda hipocrisia”, acusa.

Questionado pelo PÚBLICO, o gabinete de comunicação do executivo de Rui Moreira esquivou-se de responsabilidades, argumentando que “as situações de sinalização, acolhimento e alojamento de emergência são da responsabilidade da Segurança Social, que coordena o Eixo de Acompanhamento Social do NPISA Porto - Núcleo de Planeamento Intervenção Sem-Abrigo do Porto”. Mas o documento apresentado pelo vereador Fernando Paulo tem outra versão. É o NPISA quem está no terreno, mas a câmara passou a assumir em Fevereiro deste ano “o compromisso da sua coordenação que era da responsabilidade da Segurança Social”.

No Porto, o plano de apoio a quem vive nas ruas está integrado na Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo de 2017 a 2023. Os últimos dados da autarquia apontavam para a existência de 158 sem-abrigo sinalizados, 22 realojados e seis em comunidade terapêutica.

Para responder ao problema, o plano tem disponíveis o Hospital Joaquim Urbano, para situações de emergência, e com capacidade para 25 utentes; dois apartamentos para “acolhimento de média duração” com cinco lugares (todos ocupados); 285 camas em albergues, na Santa Casa e em centros de acolhimento; e, ainda em construção, sete fogos no Bairro das Artes Gráficas, numa parceria com a Misericórdia do Porto e o projecto Porto Amigo. Em curso, está também um plano municipal da igualdade e de combate à violência.

A meio da tarde de quinta-feira, a resposta da Segurança Social surgiu. Mihai Victor Corfu podia ir para o albergue da Praça da República. Mas José António Pinto não descansava. O local, diz, é conhecido pelas fracas condições (“ninguém aguenta ficar lá por muito tempo”). E ver as estruturas funcionarem apenas sob ameaça é uma “triste realidade”: “Não tenho dúvidas de que se não tornasse isto público ele ia dormir na rua de novo.”

Há muito que Mihai deixou de imaginar o dia de amanhã, como se ao viver no presente pudesse pôr uma capa ao medo. Sente já não ter lugar em Portugal, pensa em regressar a Tulcea. Há quase um ano o filho de 28 anos, polícia na fronteira com a Ucrânia, enviou-lhe pelo Facebook uma fotografia da neta acabada de nascer. “Com quatro quilos e meio, a cara muito gordinha”, diz sorridente e emocionado. O filho conhece apenas parte da vida do pai. Mihai Corfu recusa-se a enredá-lo nos problemas dele. Não admite pedir ajuda: “Quero que ele guarde o dinheiro para ele e para a minha netinha”. E se ainda for permitido sonhar, só pensa voltar um dia à Roménia e pegar na menina ao colo.

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