“A morna é algo que nunca vai morrer, vai existir sempre”

Teté Alhinho canta em Bragança em vésperas do Dia Nacional da Morna e no ano que esta se candidatou na UNESCO a Património Imaterial. Esta sexta-feira no Teatro Municipal, às 21h.

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Teté Alhinho fotografada para o disco Mornas ao Piano RITA CARMO

A cantora e compositora cabo-verdiana Teté Alhinho apresenta-se esta sexta-feira em concerto no Teatro Municipal de Bragança, às 21h. É o regresso da autora de temas como Chibinho ou Dia c’tchuva bem, que em 2017 lançou um disco notável, Mornas ao Piano. Este regresso faz-se no mesmo ano em que Cabo Verde entregou na UNESCO, no dia 26 de Março, a candidatura da morna a Património Imaterial da Humanidade (onde já foram reconhecidos o fado, o cante alentejano, o flamenco e agora o reggae) e estabeleceu o dia 3 de Dezembro, dia em que nasceu um dos seus maiores compositores, B.Léza (1905-1958), como Dia Nacional da Morna, que é celebrado agora pela primeira vez em Cabo Verde e na diáspora cabo-verdiana espalhada pelo mundo.

“A morna”, diz Teté Alhinho ao PÚBLICO, “é uma das nossas expressões identitárias mais fortes. Não há nenhum cabo-verdiano que fiquei indiferente a uma morna, porque o cabo-verdiano verteu nela a nostalgia, a saudade da terra, o passar mal, as dores amorosas, as perdas. A temática da morna está relacionada com a dor, embora hoje já mude um bocadinho. E foi através da morna, com a Cesária, que Cabo Verde se deu a conhecer ao mundo, com Sodade, que é uma morna rápida”. Há outros géneros musicais em Cabo Verde, mas a morna sobressai. “É um factor identitário de comunhão entre todos os cabo-verdianos e é algo que nunca vai morrer, que vai existir sempre. Se analisarmos as mornas, podemos ver através delas a história de Cabo Verde.”

Morna e outros géneros

Além da morna, há nas ilhas cabo-verdianas outros géneros como a coladeira, o batuco, o funaná ou a tabanka. “A coladeira e a morna foram as primeiras a ser exportadas e eram o que mais se tocava, principalmente em São Vicente, onde havia um grupo que realmente tocava e divulgava a música de Cabo Verde. Aliás, em Portugal foram a morna e a coladeira as primeiras a ser ouvidas, através do Marino Silva, do Fernando Quejas, da Titina.” E também de Bana e da Voz de Cabo Verde. “O batuco e o funaná eram mais rurais. Logo depois da independência, nós, que éramos a geração dos 17, 18 anos, pegámos com orgulho nesses ritmos para mostrar que tínhamos uma cultura forte e que devíamos defender o que era nosso. E assim difundimos o batuco, o funaná, a tabanka.” Já o finaçon está ligado intimamente ao batuco, cantando-o.

“O funaná foi popularizado graças a Katchás [compositor e fundador dos Bulimundo, 1951-1988]. Já o finaçon é uma filosofia, um fraseado que se faz sobre o batuco. E tem reflexões muito profundas, sobre a vida, as questões do quotidiano. A Nácia Gomi [Maria Inácia Gomes Correia, 1924-2011], que eu conheci, e que era um dos expoentes máximos do batuco e do finaçon, dizia-me assim: ‘As minhas irmãs eram muitas, casaram. Arranjaram-me um marido.’” Combinaram um almoço, deixaram-na lá com ele, mas Nácia pegou-lhe na gola da camisa e disse-lhe: “Abre-me a porta que eu vou-me embora.” E quase o levantou do chão, porque era forte. “O homem cercava-a por todos os sítios, mas ela dizia-lhe que não gostava dele.” Então ela conheceu o homem de quem gostava, de nome Paulinho Vieira (não confundir com o músico Paulino Vieira), que veio a ser o seu marido. A mãe ameaçou-a, com coisas que não lhe daria nem faria se ela casasse com ele. E Nácia narrou esse episódio a Teté Alhinho em finaçon, improvisando. “Disse-me o que respondeu à mãe: ‘Não me fica bem dar recado à minha mãe. Mas já que mandaste o recado, vejo-me na obrigação de responder. Se não queres que eu me case com o Paulinho, manda-me uma corda para amarrar o querer e uma faca para matar o amor.’ É impressionante, isto. Podia ter respondido simplesmente: vou casar porque gosto dele!”

Concerto de voz e piano

Depois da morte da morte da pianista e compositora Tututa (Epifânia de Freitas Silva Ramos Évora, 1919-2014), Teté Alhinho é praticamente a única mulher compositora de mornas em Cabo Verde, compondo e gravando, a solo ou no grupo Simentera, desde os anos 1980. “No campo mais tradicional acho que agora só estou eu.” A razão de não haver mais compositoras deve-se a antigos preconceitos sociais, diz Teté: “Socialmente, o homem tocava o violão, as mulheres aprendiam piano (eu também fui para a escola, desde os 5, e tinha piano em casa), mas uma mulher na música era mal vista. Por isso as mulheres assumiam-se mais como intérpretes.”

O concerto desta sexta-feira em Bragança será uma espécie recital, a partir de Mornas ao Piano: “Vai ser um concerto só de piano e voz, eu e o Victor Zamora. Adaptamo-nos os dois um ao outro, porque o Victor não é cabo-verdiano. Mas isso não me faz diferença nenhuma. Para já, porque ele é um grande pianista, de grande subtileza, que sabe fazer um dueto com voz. E temos outra coisa em comum, estivemos ambos na América Latina (eu estive lá dez anos, em Cuba). O concerto vai ser em torno da minha trajectória e dos temas cabo-verdianos, os nossos dramas com a chuva, o vento, as separações, a saudade, a quase que obrigatoriedade de partir, o mar.” Isto com canções como Lua bonita, Sina de Cabo Verde, Sodade, Dia c’tchuva bem ou Beju furtado, além de versões de canções cubanas como Yolanda ou Comandante (Che Guevara).

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