Queremos animais a fazerem-nos companhia também no escritório?

Quando as empresas dão trela aos animais dos colaboradores, a produtividade e o bem-estar podem aumentar, dizem alguns estudos. Em Portugal, a tendência ainda é tímida mas há já empresas e câmaras que adoptaram cães e gatos — que ficam lá dentro mesmo depois do fim do dia de trabalho.

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Miguel Manso

Como a porta do escritório está aberta ouvem-se bem as patinhas rápidas a tropeçarem pelo corredor, ora para a frente, ora para trás, a passos ritmados — “Sport! Pt? Aqui!” —, que agora se vão aproximando do escritório de Helena Vaz. A administradora espreita por baixo da secretária e quando volta a sentar-se já tem outro sorriso: “Eles vieram dar uma vida à empresa! Isto sim é alegria no trabalho.”

Há quase dois meses que a Pt e o Sport, ainda cachorros, foram adoptados pela Matosinhos Sport e vivem nas instalações da empresa municipal de desporto daquela cidade do Porto. Também os gatos Sanjo e Oliva se acomodaram nos gabinetes das vereadoras da Câmara Municipal de São João da Madeira, em Aveiro, por finais de Outubro. Já a Boomer (cadela e mascote) vai e vem todos os dias para a Boomer (agência criativa na Maia), enquanto os cerca de 800 trabalhadores do edifício da Nestlé, em Lisboa, podem optar por levar o cão para o trabalho desde Junho último, aceitando cumprir um regulamento e certificações restritas.

Como todos os gatos, Sanjo e Oliva já tomaram conta do piso dos vereadores de São João da Madeira, onde vivem desde que foram adoptados há cerca de um mês Teresa Pacheco Miranda
Oliva, em honra da fábrica com o mesmo nome que existia na cidade, deitada na cama que tem no escritório da vereadora que a adoptou Teresa Pacheco Miranda
Pt a descansar depois de um passeio à volta das instalações da Matosinhos Sport, empresa municipal de desporto onde vive há quase dois meses Teresa Pacheco Miranda
"Falámos com toda a gente, foi uma decisão negociada. Daí a informação à porta." O aviso à entrada do 6º piso da câmara de São João da Madeira. Teresa Pacheco Miranda
Sanjo, na Câmara de São João da Madeira Teresa Pacheco Miranda
Oliva Teresa Pacheco Miranda
Sport, o outro cão adoptado pela empresa municipal de Matosinhos Teresa Pacheco Miranda
Sport e Pt, deitados numa das quatro camas que têm ao dispor Teresa Pacheco Miranda
A Boomer (cadela) a brincar na Boomer (agência criativa na Maia). "Se não a pudesse trazer para o trabalho não a tinha adoptado", resume a tutora Teresa Pacheco Miranda
"Há momentos em que acaba por libertar um bocadinho do stress da equipa porque brincamos com ela. Outras vezes, ela acaba por perturbar um bocadinho a criatividade porque anda sempre a chatear os colegas e a roer os cordões." Teresa Pacheco Miranda
O elevador de serviço apenas para cães no edifício da Nestlé, em Lisboa. Miguel Manso
Alguns dos cães certificados e autorizados a entrar no edíficio 100% pet friendly da Nestlé. Trabalham lá cerca de 800 colaboradores. Miguel Manso
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Como todos os gatos, Sanjo e Oliva já tomaram conta do piso dos vereadores de São João da Madeira, onde vivem desde que foram adoptados há cerca de um mês Teresa Pacheco Miranda

Depois de alguns (poucos) centros comerciais e restaurantes portugueses permitirem a entrada a animais de companhia, o que levou estas e outras empresas a tornarem-se pet friendly? Ou a adoptarem cães e gatos que ficam nos escritórios, mesmo depois de todos os colaboradores irem para casa?

Um dos estudos recentes mais citados sobre este tema foi publicado no International Journal of Environmental Research and Public Health, em Maio de 2017. Pesou os “benefícios e os potenciais desafios” da presença de cães no local de trabalho e concluiu que, devido à necessidade de mitigar as “longas jornadas diárias”, as “maiores exigências laborais” e “o stress elevado”, as políticas “dog friendly são muito apelativas tanto para empregadores como para empregados”. “De facto, os benefícios podem manifestar-se em taxas mais baixas de absentismo e em maior moral e produtividade”, lê-se, bem como “num maior apoio social” e “num aumento das interacções” entre funcionários.

Ao jornal Guardian, em 2016, Stephen Colarelli, um dos psicólogos por trás de um outro estudo da Universidade Central de Michigan, explicava que “ter um cão no escritório faz com que as pessoas pareçam mais amigáveis e acessíveis” e que “aumente a cooperação, intimidade, confiança e outros comportamentos positivos entre grupos de trabalho”, concluiu, sem que para isso os empregadores tenham de gastar mais dinheiro. 

Mas as vantagens estão longe de ser lineares e os estudos feitos até ao momento são insuficientes para chegar a uma resposta definitiva, avisam os investigadores. A única certeza é que quando “um empregado traz o cão os efeitos no local de trabalho estendem-se para além dele”. E, por isso, “a decisão de aceitar cães ou outros animais é complexa e só deve ser tomada depois de uma reflexão cuidada”. 

Na lista de riscos é obrigatório incluir “possíveis reacções alérgicas de alguns colaboradores” (embora estas “possam ser facilmente aplacadas”, salvaguardam); fobias ou desconfortos; o bem-estar do próprio animal; doenças transmissíveis entre animais não humanos e humanos; acidentes e quedas provocadas por trelas e brinquedos fora do sítio; possíveis comportamentos agressivos e diferentes sensibilidades culturais entre diferentes colaboradores. Mas a maior parte destas situações pode ser acautelada se forem ouvidas as dúvidas e receios dos funcionários e criadas regras desde o início.

Desde que Pt e Sport chegaram, por exemplo, as rotinas da empresa municipal de Matosinhos “mudaram completamente”. Passou a haver uma esfregona na casa de banho, sacos para dejectos pendurados nos postes, é-lhes dedicada uma “parte muito pouco significativa” do orçamento da empresa. Há sempre brinquedos espalhados pelo chão, lápis roídos, camas junto a várias secretárias, bebedouros e comedouros ao lado do cabide dos casacos (onde agora também se penduram trelas).

E passou, também, “a ser melhor chegar ao trabalho”. Ana Pinto, técnica de marketing, já não se debate com ter de acordar cedo. Antes, cuida de chegar depressa para ver como estão os cães que passam a noite sozinhos (em casa deixa o seu cão, já adulto). É, ri-se, “a melhor forma de ser recebida no escritório": "Sabes quando chegamos a casa e o nosso cão se atira a nós, completamente louco? Agora também tenho isso aqui, em duplicado.” Duplicaram ainda o número de fotografias de cães que guarda no telemóvel e o Sport e a Pt herdaram o antigo puff do cão de Ana — é ali, ao lado dos pés dela, que mais gostam de dormitar, durante o dia.

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Ana Pinto, funcionária da Matosinhos Sport segura nos dois cachorros que a empresa adoptou Teresa Pacheco Miranda

Os dois cachorros pertencem à mesma ninhada nascida ainda este ano no Centro de Recolha Oficial Animal de Matosinhos, que desde Janeiro até ao final de Setembro recolheu 314 animais errantes. No final do Verão, só 40 tinham já sido adoptados (em 2017, 112 dos 430 animais lá abrigados temporariamente encontraram uma outra casa, segundo dados oficiais do município que aprovou no Orçamento de 2019 a construção de um novo Centro de Bem-estar Animal).

Ciente deste desequilíbrio — que deixa os centros municipais e abrigos de associações a abarrotarem —, Helena Vaz prestou especial atenção a um dos vários vídeos que lhe deslizam diariamente pelo feed do Facebook: o caso de uma empresa brasileira que tinha adoptado uma cadela. “Achei que adoptar um cão era algo que também conseguíamos fazer aqui, até para darmos o exemplo. Porque responsabilidade social também é isto”, acredita a engenheira civil e administradora executiva da Matosinhos Sport. “Se esta ideia se replicasse por várias empresas do concelho, o centro de recolha teria metade dos animais abandonados. Já imaginaram?” O cenário convenceu os outros membros do conselho de administração — a presidente da Câmara de Matosinhos, Luísa Salgueiro, e o vereador da Cultura, Fernando Rocha — e a “aceitação foi imediata”. Também o vereador do Ambiente, António Pinto, confessou ao P3 que gostava que a decisão fosse copiada “por outras entidades que têm responsabilidades ao nível da comunidade”.

O mesmo terá pensado o presidente da Câmara de São João da Madeira, Jorge Vultos Sequeira, quando autorizou que no piso dos vereadores morassem dois gatos. “A melhor sensibilização é a que se faz com medidas concretas. Temos que dar o exemplo e isso passa por mostrar que, além dos cidadãos, também as instituições, empresas e outras entidades podem ajudar mais neste esforço comum”, defendeu, em declarações à Lusa. Além de instituir uma Provedoria do Animal, a autarquia abre as portas aos animais de funcionários desde Outubro — de resto, antes já era autorizada a presença do cão de uma das funcionárias no centro de turismo industrial.

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Os dois gatos de seis meses vivem no sexto piso da Câmara de São João da Madeira

Como a presença de outros animais ainda não é assídua, “do piso -2 ao sétimo chegam sempre muitas visitas que param aqui no sexto andar” só para encontrarem o Sanjo, “mais aventureiro”, e a Oliva, “mais tímida”, ambos com seis meses. Entram e perguntam logo: “Então, eles hoje fizeram alguma coisa?” (Pode ou não estar relacionado com uma sala que numa manhã apareceu cheia de tiras de papel.) “Eles são muito potenciadores da alteração da dinâmica. Se nós até aqui encontrávamos as pessoas que trabalham na câmara no elevador, neste momento temos pessoas que vêm só para fazer festinhas aos gatos. E isso proporciona um contacto entre departamentos que não costuma existir”, exemplifica Irene Guimarães, vereadora da Educação e tutora do gato.

Para Paula Gaio, vereadora da Acção Social, Inclusão e Habitação e tutora da gata, “o principal aspecto a valorizar é a alteração da qualidade de vida destes animais”. Antes da adopção, sublinha, os animais estavam durante todo o dia "confinados a uma transportadora colocada em cima do balcão de atendimento da médica veterinária e à noite a uma jaula”.

Não pode haver diversão sem regras

O Sport e a Pt dormem no piso superior do edifício, excepto quando vão passar os fins-de-semana a casa dos colaboradores da empresa que se oferecem para os levar. “Se chegamos a quinta-feira sem voluntários enviamos um email geral. Assunto: Abrigo de fim-de-semana, quem pode?” Quando há incidentes — “porque também os há” — limpa a pessoa que estiver mais próxima. De segunda a sexta-feira, o primeiro a chegar ao trabalho leva-os a passear e os outros trabalhadores aproveitam as pausas de café para fazer o mesmo. Mal ouvem as trelas, os dois cães desatam a correr para a porta principal. Antes de se cumprimentar os colegas, pergunta-se “como é que estão os baixinhos?”. E também se discute por causa deles: “Porque é que lhe ralhaste, coitadinho?”

Além de Ana Pinto e de Helena Vaz, há mais cerca de 30 trabalhadores no piso ocupado por escritórios e salas de reuniões. E entre eles, havia “algumas torcedelas de nariz”. Nada de fobias declaradas, nem de alergias. Antes comentários menos optimistas — “Quero ver quando eles crescerem” era uma provocação recorrente — ou resistências em pegar na esfregona. “Hoje até vão passear os cães”, assegura a administradora. “Temos de pensar que eles estão aqui por um motivo. É uma mais-valia para todos: inegavelmente para eles que têm uma casa, mimos. E é completamente exequível para as empresas", acredita, "basta organizarem-se.”

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Na Nestlé, os cães têm de estar sempre junto às secretárias dos colaboradores. Miguel Manso

Não só para as que têm dezenas de colaboradores, mas também para as multinacionais com várias centenas. Desde Junho último, todo o edifício da Nestlé Portugal, em Linda-a-Velha, é dog friendly, depois do sucesso de um projecto-piloto que se restringia ao 3.º piso, o da equipa da Purina. Os gatos e outros animais ficaram de fora. “Decidimos que nos iríamos focar nos cães porque eles é que realmente beneficiam da experiência”, explica Ana Silva, da equipa de marketing da empresa de comida para animais de companhia, e que, diz, é muitas vezes reconhecida apenas como sendo “a dona do Artur”.

Começou a trazê-lo há três anos, quando a presença de animais ainda só era permitida durante uma semana do ano. Agora, acompanha-a quase todos os dias. “Exactamente porque registamos imensos benefícios: redução de stress, maior colaboração entre colegas, principalmente entre diferentes departamentos, melhor comunicação (não só por email), espírito de equipa mais cúmplice, melhor equilíbrio com a vida pessoal, um ambiente mais descontraído e feliz. Mais, nas raras alturas em que não temos aqui nenhum cão, os dias nem parecem os mesmos.”

O processo é, no entanto, “muito formal”, não sendo "aceite qualquer cão”. E apesar do interesse das 800 pessoas que ali trabalham, para já só estão certificados 31 cães (a adesão tem vindo a aumentar, no entanto). Os tutores têm de apresentar o plano de vacinação completo, o seguro de responsabilidade civil e outros documentos obrigatórios por lei: prova de chip e registo na junta de freguesia da área de residência. Já os animais “são avaliados por um médico veterinário e por um parceiro externo especialista em comportamento”, que determina se os cães “são sociáveis e se vão ser felizes em ambiente de escritório”. A empresa oferece a cada um deles um “kit de boas-vindas”: cama, comedouro, biscoitos e snacks, resguardos e brinquedos que ocupem o animal e não façam barulho, enumera. 

Os colaboradores aproveitam a pausa para se exercitarem e brincarem com o cão. Miguel Manso
Um dos cães a voltar do passeio. Miguel Manso
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Os colaboradores aproveitam a pausa para se exercitarem e brincarem com o cão. Miguel Manso

Ana Silva assegura que nunca receberam queixas. “Um projecto destes tem de ficar bem feito desde o primeiro dia para que todos os colaboradores estejam confortáveis”, defende. A pensar nisso, estabeleceram um regulamento que tem de ser cumprido por todos — e que inclui, por exemplo, regras de circulação e protocolos a seguir em caso de incidentes —, sondaram “questões críticas” como alergias e fobias, reforçaram a limpeza, designaram um elevador de serviço apenas para cães.

Partilham algumas destas dicas no programa Pets No Trabalho para que outras organizações tenham experiências positivas. O objectivo é criar 200 parcerias por toda a Europa, até 2020. “Nós acreditamos que se uma empresa com tantos colaboradores pode implementar este projecto e deixar toda a gente esteja confortável, é de facto possível estendê-lo para outros locais de trabalho.”

Não estão sozinhos. No campus da Amazon, em Seattle, os trabalhadores partilham o local de trabalho com seis mil cães. Todos os dias. A “tradição de trazer o teu cão para o trabalho faz parte da cultura da empresa desde o primeiro dia”, lê-se no blog da empresa de vendas online. Algumas das primeiras páginas do site foram lançadas com a pata de Rufus, o corgi que picava o ponto todos os dias com um casal de trabalhadores (e que tem um edifício em sua honra). Outra multinacional tecnológica escreveu o seguinte no código de conduta da empresa: “A ligação da Google aos nossos amigos caninos é uma parte integral da nossa cultura empresarial. Gostamos de gatos, mas somos uma empresa de cães e regra geral achamos que os gatos que nos visitassem estariam realmente stressados.”

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O processo na Nestlé "é muito formal" e não é aceite "qualquer cão" Miguel Manso

Quando perguntámos a Arménio Rego, co-autor do livro Organizacão (Edições Sílabo, 2016), qual o sector onde é mais provável a emergência desta prática, o professor catedrático que assina vários livros nas áreas da gestão de pessoas e liderança apontou precisamente para as empresas tecnológicas (além das mais óbvias, ligadas ao sector animal). “Talvez para lidar com menores competências sociais destes indivíduos ou porque o ambiente nestas organizações é menos humano e isso é compensado com a presença de animais”, especula. “Outra explicação possível é que nestas organizações há horários absurdos.” Mas regra geral, em Portugal, defende, “não existe ainda a tradição de levar os cães” para o trabalho. No Reino Unido, por exemplo, vai assinalar-se novamente em 2019 o Dia de Trazer o Cão Para o Trabalho, a 29 de Junho. É uma celebração não oficial criada por um conjunto de associações sem fins lucrativos que, dizem, "já despertou várias empresas para os benefícios" da presença de animais também nos locais de trabalho. 

Mas se há quem fique mais descansado com o cão debaixo da secretária, para outros é mais uma responsabilidade em cima da mesa. No caso de Marisa Coutinho, 34 anos, poder trazer a Boomer para a agência criativa (com o mesmo nome) que fundou na Maia foi a diferença entre adoptar ou não adoptar. "Adiei até agora porque não queria ter um cão preso ou sempre sozinho em casa."

A cadela de três meses acompanha Marisa para o trabalho todos os dias. Ri-se : "Ela às vezes acaba por perturbar um bocadinho a criatividade porque anda sempre a chatear os colegas e a roer os cordões", confessa. Acredita que mudará também com a idade e o treino para cães. Ainda assim, toda a equipa de cinco pessoas concorda com as vantagens: "Ela é um ponto de calma, no meio de momentos caóticos." Uma pausa para respirar que ganha o "amor de toda a gente". Uma vez, perguntaram a Helena Vaz, da Matosinhos Sport, o que faria se alguém se apaixonasse por um dos cães e o quisesse levar para casa. Por ela, "óptimo": "Nós vamos buscar outro."

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